André é um gênio, pensou ela, exausta de alívio. Jurou que assim seria a reação de Malcolm:
— Basta ser franca, Angelique. Conte a verdade a Malcolm, que não sabia que seu pai era um jogador, que só agora tomou conhecimento, e que ficou chocada, sem palavras, que seu pai roubou todo o seu dinheiro... é importante usar as palavras roubou e ladrão... diga a verdade, mostre a carta, e com a quantidade certa de lágrimas e ternura isso o ligará a você para sempre.
— Mas não posso mostrar a ele a carta do pai, André! — murmurara ela, angustiada. — Não ousaria... o pós-escrito é tão horrível...
— Sem a segunda página, o pós-escrito diz apenas minha esperança de que tenha uma rápida recuperação. Perfeito! A segunda página? Que segunda página? Pronto, está rasgada, nunca existiu.
Os dedos hábeis de André colaram no lugar o último fragmento da segunda página rasgada da carta.
— Tome aqui, Henri — disse ele, empurrando-a por cima da mesa. — Leia você mesmo.
Não levara muito tempo para reconstituir a página dos fragmentos jogados na cesta de papel com aparente indiferença.
Estavam na sala de Seratard, a porta trancada. A página dizia:
...e também continuo a acalentar a esperança de que você, como combinamos, possa providenciar o mais depressa possível o noivado e o casamento, por quaisquer meios necessários... Ele é o grande partido do ano, e vital para o nosso futuro, o seu em particular. A Struan resolverá os problemas da Richaud Frères em caráter permanente. Não importa que ele seja britânico, jovem demais, ou qualquer outra coisa; é agora o tai-pan da Struan, epode assegurar um futuro maravilhoso para nós dois. Seja adulta, Angelique, faça qualquer coisa necessária para pendê-lo a você, porque seu futuro esta por um fio.
— Não é tão terrível assim — comentou Seratard, inquieto — apenas o conselho de um pai em pânico, procurando por uma tábua de salvação. Struam? Sem dúvida um grande e maravilhoso partido para qualquer moça, e quem pode culpar um pai?
— Depende do pai. Esta página, se usada da maneira correta na hora oportuna é outra arma sobre Angelique e, com isso, sobre a Casa Nobre.
— Acha então que a pobre moça terá êxito?
— Devemos trabalhar para que isso aconteça. Agora que temos esta prova para usar, se houver necessidade, devemos ajudá-la por uma questão de honra. — Os lábios de André se contraíram numa linha fina e fria. — E não acho que seja uma pobre moça. Não foi ela quem preparou a armadilha para capturá-lo usando quaisquer meios necessários?
Seratard recostou-se na cadeira de couro vermelho. Sua sala era de mau gosto exceto por uns poucos óleos de pintores; franceses modernos, pouco conhecidos entre os quais Manet, que ele comprava mais barato, de vez em quando, através de um agente em Paris.
— O que ela está fazendo, a não ser reagir ao amor de um rapaz? — Ele empurrou o papel de volta. — Não gosto desses métodos, André. São repulsivos. Você encorajou a moça com um emaranhado de meias verdades, ao lhe dizer para mostrar apenas a metade da carta.
— Maquiavel escreveu: “É necessário para o Estado operar com mentiras e meias verdades, porque as pessoas são constituídas de mentiras e meias verdades. Até os príncipes.” E, com certeza, por pricípio todos os embaixadores e políticos. — André deu de ombros e dobrou a carta com cuidado. — Talvez não precisemos usar isto, mas é bom ter, porque representamos o Estado.
— E como usaríamos?
— O fato de que ela rasgou e...
— Mas não foi ela! — protestou Seratard, chocado.
— Claro que não — disse André, friamente.— Mas seria sua palavra contra a minha. Quem ganharia a disputa? O fato de que ela rasgou a segunda página, e só mostrou a primeira a Struan, seria o suficiente para condená-la aos olhos dele. Isso lhe daria um pretexto perfeito para anular qualquer promessa de casamento, já que foi enganado. A mãe de Struan? Se tivesse conhecimento dela, faria todos os tipos de concessões para se apoderar desta página, caso o filho insista em casar contra o seu conselho.
— Não gosto de chantagem.
André corou.
— Não gosto de muitos métodos que sou obrigado a usar para os nossos, e ressalto os nossos... propósitos. — Ele guardou a carta no bolso. — Mostrado á sociedade ou publicado, com os detalhes, este documento destruiria Angelique. Talvez apenas mostre a verdade: que ela não passa de uma aventureira, em conspiração com o pai, que é a menor das hipóteses um jogador, e em breve estará na bancarrota, como o tio. Ouanto a encorajá-lo, limito-me a dizer o que ela quer saber e ouvir. Para ajudá-la. O problema é dela, não meu... ou nosso.
Seratard suspirou.
— É muito triste que ela esteja em tamanha embrulhada.
— Tem razão, mas isso resulta em nosso proveito, não é mesmo? — Os lábios de André sorriam, mas não os olhos. — E no seu pessoalmente, não é mesmo, monsieur? Usada de maneira judiciosa, esta carta garantiria a presença de Angelique em sua cama, se o seu charme indubitável falhasse, o que duvido.
Seratard não sorriu.
— E você, André? O que pretende fazer com Hana, a Flor? André levantou os olhos abruptamente.
— A Flor morreu.
— Sei disso... e em circunstâncias muito estranhas.
— Não houve nada de estranho — disse André, os olhos frios como os de um réptil. — Ela cometeu suicídio.
— Foi encontrada com a garganta cortada... por sua faca. A mama-san diz que você passou a noite com ela, como sempre.
André tentava entender por que Seratard fazia aquela sondagem agora.
— É verdade, mas isso não é da sua conta.
— Receio que seja. O representante local do Bakufu apresentou um pedido formal de informações ontem.
— Diga a ele para se matar também. Hana, a Flor, era especial, sem dúvida, e era minha. Paguei o mais alto preço por ela, mas ainda assim continuava a fazer parte do mundo dos salgueiros.
— Como você disse, com toda razão, as pessoas são constituídas por mentiras e meias verdades. A queixa enuncia que você teve uma violenta briga com ela. Porque ela tomara um amante.
— Tivemos uma briga, é verdade, e admito que senti vontade de matá-la, mas não por esse motivo — murmurou André, meio engasgado. — A verdade... a verdade é que ela tinha alguns clientes. Três... na outra casa, mas isso foi antes de ela se tornar minha propriedade. Um deles... um deles a deixou com sífilis, que ela passou para mim.
Seratard ficou consternado.
— Mon Dieu, sífilis?