Nos portões, o sargento da guarda deteve-os, com toda polidez, e perguntou aonde Hoag ia.
— Mandarei dois dos meus homens acompanhá-lo. É melhor ter segurança em excesso do que se arrepender depois.
A moça ainda tentou dissuadi-los de levar os soldados, mas o sargento se mostrou intransigente. Ela acabou concordando e conduziu-os pela rua, cada vez mais nervosa, entraram por uma viela, depois outra, e mais outra. Os aldeões por que passavam no caminho desviavam os olhos e se afastavam apressados. Hoag levava sua maleta de médico. Por cima dos telhados, ainda podia avistar o templo, e sentiu-se seguro, contente pela companhia dos soldados, sabendo que seria uma terneridade sair sem eles. Cheng-sin seguia a seu lado, um cajado alto na mão.
Essa moça não é o que finge ser, pensou Hoag, um tanto excitado pela aventura.
Entraram em outra viela. A moça parou diante de um portão em uma cerca alta e bateu. Uma grade pequena foi aberta, depois o portão. Quando o corpulento criado viu os soldados, fez menção de fechar de novo, mas a moça lhe ordenou autoritária, que desistisse.
O jardim era pequeno, bem cuidado, mas não extravagante. Nos degraus para a varanda de uma pequena casa de shoji, ela tirou os sapatos de madeira e pediu-lhes que fizessem a mesma coisa. Era difícil para Hoag, pois usava botas de cano alto. A moça mandou que o criado o ajudasse e ele obedeceu no mesmo instante.
— É melhor vocês dois ficarem de guarda aqui — disse Hoag aos soldados embaraçado pelos buracos em suas meias.
— Certo, senhor. — Um dos soldados verificou seu fuzil. — Vou dar uma olhada nos fundos. Se houver algum problema, basta gritar.
A moça puxou a porta de shoji da casa. Ori Toyama, o shishi do ataque na Tokaidô, estava deitado sobre futons, o lençol encharcado de suor, abanado por uma criada. Ela arregalou os olhos ao deparar com Hoag, e não o Honorável Curandeiro Gigante da Medicina, como esperava, e recuou quando ele entrou.
Ori se encontrava inconsciente, em coma... suas espadas estavam numa prateleira baixa próxima, um arranjo de flores no takoma. Hoag agachou-se ao seu lado. O rapaz tinha a testa muito quente, o rosto afogueado, com uma febre perigosamente alta. A causa logo ficou evidente, quando Hoag removeu a bandagem que cobria o ombro e a parte superior do braço.
— Oh, Deus! — murmurou ele, ao constatar a extensão da inflamação inchada e purulenta, o cheiro revelador e a carne preta do tecido morto, gangrenado, em torno do ferimento a bala.
— Quando ele levou o tiro?
— Ela não sabe direito. Duas ou três semanas.
Mais uma vez, Hoag examinou o ferimento. Depois, alheio a todos os olhos que o focalizavam, foi sentar-se na varanda, o olhar perdido no espaço.
Tudo o que preciso agora é de meu excelente hospital em Hong Kong, com os melhores equipamentos de cirurgia, e minhas maravilhosas enfermeiras de Nightingale, junto com muita sorte, para salvar esse pobre rapaz. Malditas armas de fogo, malditas guerras, malditos políticos...
Pelo amor de Deus, venho tentando curar ferimentos de bala durante toda a minha vida profissional, e fracassando na maioria das vezes — seis anos com a Companhia das índias Orientais, na sangrenta Bengala, quinze anos em Hong Kong, e anos na guerra do ópio, um ano como voluntário na Criméia, o pior de tudo. Essas miseráveis armas de fogo! Por Deus, quanto desperdício!
Depois de descarregar sua raiva, ele acendeu um pequeno charuto, tragou, apagou o fósforo, jogou-o ao chão. No mesmo instante, o chocado criado se adiantou apressado e recolheu o objeto ofensivo.
— Desculpe — murmurou Hoag, sem ter notado antes a limpeza impecável do caminho e da área ao redor.
Ele aspirou fundo a fumaça e depois removeu tudo de sua mente, exceto o rapaz. Acabou tomando uma decisão. Ia jogar o charuto ao chão, mas entregou-o ao criado, que fez uma mesura e se afastou para enterrá-lo.
— Cheng-sin, diga a ela que sinto muito, mas que eu opere ou não, acho que seu irmão vai morrer. Sinto muito.
— Ela diz: “Se morrer é karma. Se não ajudar, ele morre hoje, amanhã. Por favor, tente. Se ele morrer, karma.” Ela pede ajuda. — Uma pausa, e Cheng-sin acrescentou, suavemente: — Doutor em Medicina Sábio Iluminado, este jovem importante. Importante tentar, hem?
Hoag olhou para a moça. Ela sustentou seu olhar e murmurou:
— Dozo, Hoh Geh-sama. Por favor.
— Está bem, Uki. Cheng-sin, diga a ela outra vez que não posso prometer coisa alguma, mas vou tentar. Precisarei de sabão, muita água quente em tigelas, lençóis limpos, panos limpos rasgados em tiras, muito sossego e alguém com estômago forte para me ajudar.
A moça apontou para si mesma.
— Soji shimasu. Eu ajudarei. Hoag franziu o rosto.
— Avise a ela que será bastante desagradável, muito sangue, muito mau cheiro, uma coisa horrível.
Ele a viu escutar o chinês com uma atenção total e depois declarar, com evidente orgulho:
— Gomen nasai, Hoh Geh-san, wakamarisen. Watashi samurai desu.
— Ela diz: “Por favor, desculpe, eu compreendo. Sou samurai.”
— Não sei o que isso significa para você, minha jovem, e não imaginava que mulheres podiam ser samurais, mas vamos começar.
Hoag não demorou a descobrir que uma das características dos samurais era a coragem. A moça não fraquejou em nenhum momento, durante a operação de limpeza, o corte do tecido infeccionado, a liberação do pus fétido, o sangue pulsando de uma veia parcialmente cortada, até que ele conseguiu estancar a hemorragia, usando várias mechas. As mangas enormes do quimono de criada que ela vestira estavam enroladas e amarradas para não atrapalharem e, assim como o lenço com que cobrira os cabelos, logo ficaram sujas e malcheirosas.
Hoag trabalhou durante uma hora, murmurando de vez em quando, os ouvidos fechados, as narinas fechadas, numa concentração absoluta, repetindo uma operação que já realizara mil vezes. Cortar, costurar, limpar, enfaixar. E depois ele terminou.
Sem pressa, esticou os músculos com cãibras das costas, lavou as mãos e tirou o lençol agora ensangüentado que usara como avental. Ori se encontrava na beira da varanda, numa mesa improvisada, e Hoag de pé no jardim.
— Não dá para trabalhar ajoelhado, Uki — explicara ele.
Tudo o que ele pedira, a moça fizera sem a menor hesitação. Não houvera necessidade de anestesiar o homem que ela dissera se chamar Hiro Ichikawa, pois seu coma era profundo. Uma ou outra vez, Ori gritara, mas não de dor, apenas porque algum demônio o atormentara em seu pesadelo. E se debatera, mas sem força.