— Ela não parece tão feia ao luar. Mas aqueles seios empurrariam a gente.
Ori não respondeu, fascinado.
E, de repente, a moça hesitou, olhou para baixo. Diretamente para eles. Embora não houvesse a menor possibilidade de que ela pudesse vê-los ou ouvi-los, seus corações dispararam. Esperaram, quase sem respirar. Outro bocejo exausto. Ela continuou a escovar os cabelos por mais um momento, depois largou a escova, parecendo tão próxima que Ori teve a impressão de que quase poderia tocá-la se estendesse a mão. À claridade, dava para ver os detalhes do quarto, o bordado na seda, os mamilos duros por baixo e a expressão atormentada que ele vislumbrara no dia anterior — teria sido mesmo apenas ontem? — e que detivera o golpe que a teria liquidado.
Um último e estranho olhar para a lua, outro bocejo abafado, e ela fechou a janela. Mas não por completo. Nem trancou. Shorin rompeu o silêncio, sussurrando o que ambos pensavam:
— Seria fácil subir até lá.
— Tem razão. Mas viemos aqui pelas armas e para criar confusão. Nós...
Ori parou de falar, a mente invadida pelo brilho súbito de uma nova e maravilhosa diversão estratégica, uma segunda oportunidade, maior do que a primeira.
— Shorin, se você a silenciasse, depois a possuísse, sem matá-la, apenas deixando-a inconsciente, para contar depois o que acontecera, largando no quarto algum sinal que nos ligasse ao ataque na Tokaidô, e depois matássemos juntos um ou dois soldados e desaparecêssemos com ou sem suas armas... tudo isso dentro da legação... eles não ficariam loucos de raiva?
A respiração sibilou pelos lábios de Shorin à beleza da idéia.
— Claro que sim, mas seria melhor cortar a garganta da mulher e escrever “Tokaidô” com seu sangue. Vá você. Ficarei de guarda aqui. É mais seguro. — Como Ori hesitasse, ele acrescentou:— Katsumata disse que errávamos ao hesitar. Na última vez você hesitou. Por que hesitar?
Foi uma decisão de fração de segundo, e Ori correu para o prédio, uma sombra entre muitas sombras. Chegou lá num instante, começou a subir.
Fora da casa da guarda, um dos soldados murmurou:
— Não olhe agora, Charlie, mas acho que vi alguém correndo para a casa.
— Chame o sargento, com todo cuidado.
O soldado fingiu se espreguiçar, depois entrou na casa da guarda. Depressa, mas cauteloso, sacudiu o sargento Towery até despertá-lo e repetiu o que vira ou pensava ter visto.
— Como o sujeito parecia?
— Só percebi o movimento, sargento. Ou pelo menos foi essa a impressão, mas não tenho certeza. Pode ter sido apenas uma sombra.
— Muito bem, meu rapaz, vamos dar uma olhada.
O sargento Towery acordou o cabo e mais outro soldado, colocou-os de prontidão. Depois, saiu com os dois primeiros para o jardim.
— Foi mais ou menos ali, sargento.
Shorin viu-os se aproximando. Não havia nada que pudesse fazer para avisar Ori, que já se encontrava quase na janela, ainda bem, camuflado por suas roupas e pelas sombras. Observou-o alcançar o peitoril, empurrar a janela e desaparecer no interior do quarto. A janela voltou lentamente ao lugar. Karma, pensou Shorin, passando a se concentrar na situação crítica em que se achava.
O sargento Towery parou no meio do caminho, inspecionou com o máximo de atenção a área ao redor e o prédio. Muitas janelas do andar superior estavam abertas e destrancadas, e por isso ele não se preocupou. Uma delas se mexeu, rangendo ao vento. Aporta do jardim estava trancada. Ao final, ele disse:
— Charlie, fique daquele lado. — O sargento apontou um ponto próximo ao lugar em que Shorin se escondia. — Nogger, fique do outro lado. Mantenham os olhos bem abertos. E calem as baionetas.
Foi obedecido no mesmo instante.
Shorin soltou a espada na bainha, a lâmina também escurecida para a incursão noturna, e se ajeitou em posição de ataque, sentindo um aperto na garganta.
Assim que entrou no quarto, Ori verificou a única porta, constatou que estava trancada, viu que a moça ainda dormia, tirou da bainha a espada curta e se encaminhou para a cama. Era uma cama de baldaquino, a primeira que ele via. Tudo ali era estranho, a altura e a impressão de permanência, as colunas, cortinas, roupas de cama. Por um instante, ele especulou como seria dormir numa cama assim, tão longe do chão, em vez da maneira como os japoneses dormiam, em futons — colchões de palha finos e quadrados — estendidos à noite, guardados durante o dia.
Seu coração disparara, e tentava manter a respiração baixa, não querendo despertá-la ainda, sem saber que a moça se encontrava profundamente drogada. Não havia qualquer luz acesa no quarto, mas o luar entrava pelas persianas, e ele viu os cabelos compridos e louros espalhados sobre os ombros, a elevação dos seios, as penas delineadas sob o lençol. Um perfume a envolvia, deixando-o inebriado.
Foi nesse instante que ouviu o barulho de baionetas se encaixando, o murmúrio de vozes no jardim... Por uma fração de segundo, ficou apavorado. Às cegas, ergueu a espada curta para matar a moça, mas ela não se mexeu. Sua respiração não se alterou.
Ori hesitou, foi até a janela sem fazer barulho, deu uma espiada. Avistou os soldados e se perguntou, em pânico: Eles me viram ou notaram Shorin?
Se assim for, estou acuado, mas não importa, ainda posso realizar o que vim fazer aqui, e talvez eles se afastem. Tenho duas saídas, a porta e a janela. Paciência, Katsumata sempre aconselhou. Use a cabeça, espere com calma, depois ataque sem hesitação e escape quando chegar o momento, que sempre haverá de surgir. A surpresa é sua melhor arma!
Seu estômago se contraiu. Um dos soldados seguia para o esconderijo. Embora soubesse exatamente onde Shorin estava, Ori não podia divisá-lo. Mal respirando, ele esperou para ver o que aconteceria. Talvez Shorin os afaste. Mas independente do que acontecer, ela morre, prometeu Ori a si mesmo.
Shorin observou o soldado se aproximar, tentando desesperadamente descobrir uma saída da armadilha e amaldiçoando Ori. Deviam tê-lo avistado! Se eu matar este cão, não tenho a menor possibilidade de alcançar os outros antes que atirem em mim. E não conseguirei chegar ao muro sem ser visto.
Foi uma estupidez de Ori mudar o plano, eles o viram, eu disse que a mulher era encrenca... ele deveria tê-la matado na estrada... Talvez este bárbaro não perceba minha presença e me dê tempo suficiente para correr até o muro.
O luar refletia-se na baioneta comprida, enquanto o soldado sondava as folhagens, separando-as aqui e ali para ver melhor.
Mais e mais perto. Seis passos, cinco, quatro, três...
Shorin permaneceu imóvel, o rosto todo coberto agora, os olhos quase ocultos, e prendeu a respiração. O soldado quase roçou nele ao passar, seguiu adiante, parou por um instante, deu mais uns poucos passos, sondando de novo. Shorin voltou a respirar. Podia sentir o suor nas costas, mas sabia que agora se encontrava seguro, dentro de uns poucos momentos estaria a salvo no outro lado do muro.