— O ministro deve pedir reparações imediatas e que os assassinos sejam entregues. E, quando houver a demora inevitável, ele deve ordenar que a esquadra ataque Iedo.
— Melhor ainda seria desembarcar com toda força... temos tropas suficientes... ocupar a capital, remover o rei... como é mesmo que ele se chama?... ah, sim, xógum, designar nosso novo soberano nativo e transformar o Japão num protetorado. Ou ainda melhor, para eles, integrá-lo ao império.
Pallidar sentia-se exausto, pois ficara acordado durante a maior parte da noite. O uniforme estava desabotoado, mas penteara os cabelos e fizera a barba. Gesticulou para um dos criados.
— Chá, por favor.
O jovem chinês, impecavelmente vestido, compreendeu muito bem, mas fitou-o com uma expressão aturdida, para divertimento dos outros.
— O que foi mesmo que disse, senhor? Quer chá? Foi isso o que ouvi? Quer um chá?
— Ora, deixe para lá, pelo amor de Deus!
Pallidar levantou-se, com um ar de cansado, foi até o aparador com sua xícara, serviu-se de chá, enquanto todos os criados riam muito, mas por dentro, pelo descrédito do insolente demônio estrangeiro, e depois continuaram a escutar, na maior atenção, o que os dois diziam.
— É uma questão de poderio militar, meu caro. E posso lhe dizer, com toda franqueza, que o general ficará furioso pela perda de um granadeiro para um assassino nojento, vestido como Ali Babá. Vai querer vingança... todos nós vamos querer.
— Não sei de nada sobre um desembarque... a marinha, sem dúvida, pode abrir uma passagem para vocês com um bombardeio, mas não temos a menor idéia de quantos samurais existem, não sabemos coisa alguma sobre a força dos japoneses.
— Independentemente de quantos sejam, de sua força, sempre podemos derrotá-los, porque não passam de um bando de nativos atrasados. Claro que podemos vencê-los. Exatamente como fizemos na China. Não consigo entender por que não anexamos a China, e acabamos de uma vez com todos os problemas.
Todos os criados ouviram e entenderam, e todos juraram que quando o Reino Celestial possuísse canhões e navios, para se igualar aos canhões e navios dos bárbaros, haveriam de ajudar a esfregar os narizes daqueles invasores em sua própria bosta, ensinando-lhes uma lição que duraria mil gerações. Todos eles haviam sido escolhidos pelo ilustre Chen, Gordon Chen, o compradore da Casa Nobre.
— Não quer mais um pouco de ovo, senhor? — indagou o mais corajoso, com um sorriso em que exibia todos os dentes, estendendo a bandeja com os ovos moles sob o nariz de Pallidar. — Muito bons.
Pallidar empurrou a bandeja para longe, repugnado.
— Não, obrigado. Escute, Marlowe, eu acho...
Ele parou de falar quando a porta foi aberta, e Tyrer entrou na sala.
— Bom dia. Você deve ser Phillip Tyrer, da legação. — Pallidar apresentou-se, depois a Marlowe, e acrescentou, em tom joviaclass="underline" — Lamento profundamente o infortúnio de ontem, mas sinto-me orgulhoso em apertar sua mão. Tanto o Sr. Struan quanto a Srta. Richaud disseram a Babcott que estariam mortos se não fosse Por você.
— É mesmo? — Tyrer mal podia acreditar em seus ouvidos. — Tudo aconteceu muito depressa. Num momento as coisas estavam normais, no instante seguinte corríamos para salvar nossas vidas. Fiquei apavorado.
Agora que dissera em voz alta, Tyrer sentiu-se melhor, e ainda mais quando Os dois militares consideraram o comentário como modéstia, puxaram uma cadeira para que sentasse e ordenaram aos criados para lhe trazerem comida.
— Quando fui vê-lo ontem à noite, você se encontrava morto para o mundo — disse Marlowe. — Sabíamos que Babcott lhe deu sedativos, e por isso creio que ainda não soube do nosso assassino.
Tyrer sentiu o estômago se contrair.
— Assassino?
Eles relataram os acontecimentos. E falaram de Angelique.
— Ela está aqui?
— Está, sim, e demonstrou ter muita coragem.
Por um momento, Marlowe pensou em Angelique. Não tinha nenhuma jovem que o atraísse na Inglaterra, nem em qualquer outro lugar, apenas umas poucas primas aceitáveis, mas nenhuma mulher especial, e pela primeira vez sentia-se feliz por isso. Talvez Angelique ficasse, e depois... depois, veremos.
Seu excitamento aumentou. Pouco antes de partir do porto de Plymouth, um ano atrás, o pai, comandante Richard Marlowe, da marinha real, lhe disse:
— Está com vinte e sete anos, rapaz, tem o seu próprio navio agora... embora seja uma porcaria... é o mais velho, e chegou o momento de casar. Quando voltar desse cruzeiro pelo Extremo Oriente, terá mais de trinta anos. Com um pouco de sorte, a esta altura já serei vice-almirante e poderei... ora, poderei lhe dar alguns guinéus extras, mas pelo amor de Deus não conte à sua mãe... nem a seus irmãos e irmãs. É hora de se decidir. O que acha de sua prima Delphi? O pai pertence ao serviço, embora seja apenas no exército indiano.
Marlowe prometera que escolheria ao voltar. Agora, talvez não precisasse mais se contentar com a segunda, terceira ou quarta melhor.
— A Srta. Angelique deu o alarme na colônia, e depois insistiu em vir até aqui ontem à noite... o Sr. Struan pedira para vê-la com urgência... parece que ele não está muito bem, sofreu um ferimento grave, e por isso concordei em trazê-la. É uma mulher e tanto.
— Também acho.
Um estranho silêncio os dominou, cada um sabendo dos pensamentos do outro, rompido finalmente por Phillip Tyrer:
— Por que um assassino viria até aqui?
Os outros dois perceberam o nervosismo em sua voz.
— Para cometer mais alguma iniqüidade, eu suponho — respondeu Pallidar. — Mas não precisamos nos preocupar, porque pegamos o homem. Viu o Sr. Struan esta manhã?
— Dei uma espiada, mas ele estava dormindo. Espero que fique bom. A operação não foi fácil e...
Tyrer parou de falar, ao ouvir uma altercação lá fora. Pallidar foi até a janela, seguido pelos outros, O sargento Towery gritava com um japonês seminu, no outro lado do jardim.
— Ei, você, venha até aqui!
O homem, aparentemente um jardineiro, era forte e jovem, encontrava-se a cerca de vinte metros de distância. Usava apenas uma tanga e carregava um feixe de gravetos e galhos sobre um dos ombros, alguns envoltos por um pano preto, enquanto recolhia outros, meio sem jeito. Por um instante, o japonês se mannteve empertigado, depois começou a se abaixar e levantar, fazendo reverências submissas na direção do sargento.
— Por Deus, esses sujeitos não têm o menor senso de vergonha! — comentou Pallidar, com evidente aversão. — Nem mesmo os chineses se vestem assim... nem os indianos. Dá para ver suas partes íntimas.
— Já me contaram que alguns se vestem assim até no inverno — disse Marlowe. — Parece que não sentem frio.
Towery tornou a gritar, chamando o jardineiro. O homem continuou a se curvar, balançando a cabeça com extremo vigor, mas em vez de se adiantar, deu a impressão de que entendera errado a ordem, e virou-se, ainda meio encurvado, correndo para o canto do prédio. Quando passou pela janela, olhou para os ingleses ali postados, fez outra reverência abjeta, em humilde obediência, continuou apressado na direção dos alojamentos dos criados, quase oculto pela folhagem, e desapareceu.