Ela saiu do quarto ao sol do final da tarde, atravessou o corredor, desceu a escada principal para o saguão de entrada. Usava agora o vestido de anquinha do dia anterior, elegante outra vez, mais etérea do que nunca — os cabelos arrumados, presos no alto da cabeça, os olhos realçados. Perfume e o farfalhar de anáguas.
As sentinelas na porta principal murmuraram um cumprimento embaraçado, intimidadas por sua beleza. Angelique retribuiu com um sorriso distante e se encaminhou para a enfermaria. Um criado chinês fitou-a boquiaberto e passou apressado.
A porta foi aberta um instante antes de Angelique alcançá-la. Babcott saiu, parou no mesmo instante.
— Olá, Srta. Angelique... puxa, como está bonita! — disse ele, quase gaguejando.
— Obrigada, doutor. — Seu sorriso era gracioso, a voz, gentil. — Gostaria de lhe falar... Podemos conversar por um momento?
— Claro. Vamos entrar. Fique à vontade.
Babcott levou-a para sua sala, fechou a porta, instalou-a em sua melhor cadeira, foi sentar atrás da mesa, impressionado com a radiância de Angelique, pela maneira como o penteado destacava o pescoço longo à perfeição. Ele tinha os olhos injetados, sentia-se muito cansado. Mas assim é a vida, pensou, deleitando-se com a visão da moça.
— Aquela bebida que me deu, ontem à noite, era alguma espécie de droga?
— Era, sim. Fiz bastante forte, pois você estava um pouco transtornada.
— Tudo me parece tão vago e confuso, a Tokaidô, a vinda para cá, a visita a Malcolm... A droga que me deu para dormir era mesmo muito forte?
— Era, sim, mas não perigosa. O sono é a melhor cura, e tem de ser do melhor tipo, um sono profundo. Não resta a menor dúvida de que você dormiu bem, pois já são quase quatro horas da tarde. Como se sente?
— Ainda um pouco cansada. — Outra vez o sorriso hesitante. — Como está monsieur Struan?
— Não houve qualquer mudança. Eu ia vê-lo agora. Pode me acompanhar, se quiser. Ele está indo bem, considerando tudo. Ah, antes que eu me esqueça, pegaram aquele sujeito.
— Que sujeito?
— Aquele sobre o qual lhe falamos ontem à noite, o intruso.
— Não me lembro de nada sobre a noite.
Babcott relatou o que acontecera na porta do quarto e no jardim, como um assaltante fora morto a tiros, e o outro avistado naquela manhã, mas conseguira escapar. Angelique precisou de toda a sua força de vontade para se manter impassível, e não gritar em voz alta o que pensava: Seu filho de Satã, com suas poções para dormir e sua incompetência! Dois assaltantes? O outro deve ter ido ao meu quarto, enquanto você fracassava na tentativa de descobri-lo, se mostrava incapaz de me salvar... você e aquele outro idiota, Marlowe, igualmente culpado!
Mãe Abençoada, dê-me forças, ajude a me vingar dos dois. E também dele, quem quer que seja. Mãe de Deus, permita que eu seja vingada. Mas por que roubar meu crucifixo e deixar as outras jóias; e por que os caracteres, o que significam? E por que em sangue, o sangue dele?
Ela percebeu que Babcott a fitava fixamente.
— Oui?
— Perguntei se gostaria de visitar o Sr. Struan agora.
— Hum... claro, claro. Eu agradeço. — Angelique levantou-se, mais uma vez sob controle. — Infelizmente, derramei água nos lençóis... poderia pedir à criada para lavá-los, por favor?
Ele riu.
— Não temos criadas aqui. É contra os regulamentos dos japoneses. Só temos empregados chineses. Não se preocupe. No momento em que saiu do quarto, eles começaram a arrumar... — Babcott parou, vendo-a empalidecer. — O que aconteceu?
Por um instante, a cautela a abandonou, e ela se viu de volta ao quarto, lavando e esfregando, apavorada porque as manchas não saíam. Ao final, porém, conseguira removê-las, e se lembrava de que verificara e tornara a verificar, e assim o segredo estava seguro — nada restara para revelá-lo, nem umidade, nem sangue seu segredo seguro para sempre, enquanto fosse forte, e se ativesse ao plano, tinha de se ater, e precisava também ser esperta, não havia outro jeito.
Babcott ficou chocado com a súbita palidez, os dedos de Angelique retorcendo um pedaço da saia. Foi para o seu lado no mesmo instante, segurou-a pelos ombros, com extrema gentileza.
— Não se preocupe mais. Está sã e salva agora, nada mais tem a temer.
— Desculpe — murmurou ela, a cabeça encostada no peito do médico, descobrindo que as lágrimas escorriam. — É que eu estava... me lembrando do pobre Canterbury.
Angelique observou a si mesma, como se estivesse fora de seu corpo, deixou que Babcott a confortasse, absolutamente convenci da de que seu plano era o único viável, o único sensato: nada acontecera. Nada, nada, nada.
Vai acreditar nisso até a próxima regra. E depois, se chegar, vai acreditar para sempre.
E se não chegar?
Não sei, não sei, não sei.
7
Segunda-feira, 15 de setembro:
— Os gai-jin são vermes sem bons modos — declarou Nori Anjo, tremendo de raiva. Era o chefe do roju, o Conselho de Cinco Anciãos, um homem atarracado, de rosto redondo, com um traje suntuoso. — Rejeitaram nosso pedido de desculpas, o que teria encerrado o incidente na Tokaidô, e agora, impertinentes, exigem uma audiência formal com o xógum... a escrita é a pior possível, as palavras ineptas. Tome aqui. Leia você mesmo. Acabou de chegar.
Com uma impaciência que mal conseguia disfarçar, ele entregou o pergaminho a seu adversário muito mais jovem, Toranaga Yoshi, sentado à sua frente. Estavam a sós numa das salas de audiências no alto da torre central do castelo de Iedo, após ordenarem que todos os guardas se retirassem. Uma mesa baixa, laqueada de vermelho, os separava, com uma bandeja de chá preta em cima, contendo xícaras e bule de porcelana.
— Não importa o que os gai-jin digam. — Apreensivo, Yoshi pegou o pergaminho, mas não o leu. Ao contrário de Anjo, suas roupas eram simples, e as espadas que usava não eram cerimoniais. — De alguma forma, devemos manipulá-los para fazerem o que quisermos.
Ele era o daimio de Hisamatsu, um pequeno mas importante feudo ali perto, descendente direto do primeiro xógum Toranaga. Por “sugestão” recente do imperador, apesar da oposição ostensiva de Anjo, fora designado para guardião do herdeiro, o menino xógum, e para preencher a vaga que se abrira no Conselho dos Anciãos. Alto, aristocrata, tinha vinte e seis anos, as mãos delicadas, de dedos compridos.