— Fizemos um funeral simulado.
— Sei disso, e já perguntei, várias vezes, se era apenas simbólico, por que usar um caixão de verdade, com um cadáver de verdade, embora de um nativo, e jogá-lo pela amurada com uma cerimônia de sepultamento cristão no mar?
Jamie deu de ombros, embatucado com aquela pergunta inevitável. Naquela manhã, Skye lhe dissera:
— É melhor ignorar a questão, exibir a maior desfaçatez, manter a maior discrição, pois não há muito que ele possa fazer, a não ser cuspir fogo.
Agora, Jamie murmurou:
— O caixão estava ali e achei que seria uma boa idéia.
— Ah, quer dizer que foi tudo idéia sua?
— Foi, sim — respondeu Jamie, lançando um olhar furioso para Hoag, que já começava a abrir a boca. — Fiz a sugestão, e os outros apenas concordaram. Era o desejo do tai-pan... o desejo de Malcolm e da Sra. Struan. Não havia mal nenhum.
— Pois eu discordo. Toda a idéia é macabra, foram deliberadamente contra a minha decisão. Parece haver um espantoso colapso do pensamento racional e um desejo de todas as pessoas reunidas aqui para evitar me contar a verdade, a explicação simples, um conluio para ocultar... para ocultar o quê? Não concorda, Phillip?
Tyrer teve um sobressalto em sua cadeira.
— Hum... sim, senhor, se é o que diz.
— Por que usar um caixão de verdade, um corpo de verdade?
Hoag remexeu-se em sua cadeira, contrafeito. Todos sabiam que a qualquer momento ele perderia o controle. Angelique concluiu que o momento era agora e começou a chorar.
— Por que não nos deixa em paz? Não fizemos mal nenhum, apenas o que achávamos melhor, o que meu marido queria, o que eu queria para ele...
— Angelique, por favor, não cho...
— ...o que ele queria, e o senhor nos proibiu. A culpa é sua, Sir William. Pensei que era nosso amigo. Se fosse mesmo amigo, e se mostrasse... razoável, não teríamos todo esse problema, pois é claro que não foi nada agradável fazer uma coisa às escondidas, embora eu ache que o senhor estava errado, e...
— Sra. Struan, eu...
— ...é claro que foi horrível, nenhum de nós queria fazer aquilo, mas pelo menos fizemos de boa fé, diante de Deus, pelo menos estes amigos, amigos de verdade, ajudaram a fazer direito o que meu marido e eu... não era pedir demais...
Por um momento, ela pensou em sair correndo da sala, mas sensatamente não o fez, compreendendo que isso nada resolveria e deixaria os outros à mercê de Sir William. Por isso, continuou onde estava, desmanchando-se em soluços ainda mais desesperados, sabendo que não mentira, e dissera a verdade pura e simples, que tudo fora culpa dele.
Em segundos, todos se agruparam ao seu redor, tentando acalmá-la, todos se sentindo aflitos, exceto Skye, impressionado pela maneira brilhante como Angelique escolhera o momento certo, e Sir William, que no fundo se divertia com a situação, embora simulasse, para salvar as aparências, que se encontrava também perturbado. Ele se limitou a observar e a esperar, ainda irritado com as maquinações — quaisquer que fossem — que todos haviam concebido em conjunto. O que dera neles, quem seria o verdadeiro culpado? Não podia ter sido Jamie, não é mesmo? Fora uma tremenda estupidez o que fizeram. Uma coisa absurda. Não havia o menor sentido em arriscarem a vida daquele jeito.
As pessoas não prestam. Nem mesmo Angelique. Ah, mas que dama, que tesouro, que atriz... de onde será, em nome de Deus, que ela tira tudo isso? Como a maioria das moças dessa idade, sua instrução é mínima, e no seu caso ainda por cima a recebeu num convento, o que é muito pior. Heavenly a instruiu para o julgamento do século? Ou sou apenas um velho tolo e cético? De qualquer forma vou me sentir muito triste ao perdê-la.
O relógio na cornija da lareira bateu um quarto para a hora. Tempo de ir para a igreja, pensou ele, tempo de parar... iria ler a Bíblia durante o culto e ainda não tivera tempo de analisá-la.
— Calma, Sra. Struan, calma... — murmurou ele, como faria um pai bondoso, embora severo. — Não há necessidade de lágrimas. Todos já tivemos muito por que chorar, recentemente. Devo admitir que ainda desaprovo totalmente o que fizeram, uma coisa lamentável, mas nas circunstâncias emocionais creio que é melhor deixar as coisas como estão, pelo menos por enquanto.
Outra vez ele fingiu não notar o suspiro de alívio coletivo, nem a maneira como os soluços de Angelique se desvaneceram, e continuou:
— Agora, chegou o momento de irmos para a igreja, e depois embarcará no navio de correspondência, acompanhada por nossos desejos de bon voyage e uma vida longa. Para ser sincero, lamentaremos muito, ficaremos muito tristes, por vê-la partir de nossas praias.
— Eu... não vou embora agora, Sir William.
— Como?
Sir William e Tyrer ficaram atônitos. Entre soluços, a cabeça baixa, Angelique murmurou:
— O Dr. Hoag me aconselhou a não viajar pelo menos por mais uma semana. Hoag apressou-se em dizer:
— É isso mesmo. Por motivos médicos, não é uma boa idéia, Sir William, não é absolutamente uma boa idéia.
Naquela manhã, Skye, apoiado por Jamie, insistira que era melhor que Angelique não viajasse por algum tempo.
— O que ela precisa, doutor, é de um atestado médico, que possa ser aceito por Tess Struan. Com tanta emoção, não acha que ela não deveria viajar agora, nem tentar qualquer confrontação, enquanto não estiver mais forte?
Hoag concordara prontamente e dizia agora a Sir William:
— Como pode verificar, ela fica transtornada por qualquer coisa; dei-lhe um atestado médico, embora isso não seja necessário.
Por um momento, Sir William não sabia o que pensar. Por um lado, não a perderiam agora; por outro, havia o problema que ela já representava, e o espinho incômodo em que inevitavelmente se tornaria quando a ira de Tess Struan se abatesse sobre a sua pessoa e todos os outros, ainda em sua jurisdição.
— Acho realmente que deveria partir, madame. Pensei que era ímportante comparecer ao funeral.
— Bem que quero ir, mas... — A voz tremeu, um novo soluço sacudiu todo o corpo de Angelique. — O Dr. Hoag seguirá em meu lugar. Não me sinto em condições... é melhor...
— Mas você também vai, Jamie, não é?
— Não, senhor. Recebi ordens da Sra. Tess Struan para fazer determinadas coisas aqui.
— Que Deus abençoe minha alma! — Sem muito empenho, Sir William tentou dissuadi-la, acabou suspirando. — Muito bem, se é o Dr. Hoag quem diz, não há mais o que discutir. Afinal, ele é o médico da Struan.
Sir William levantou-se. Visivelmente aliviados, todos lhe agradeceram e começaram a se retirar.
— Espere um pouco, Dr. Hoag. Eu gostaria de lhe falar por um momento, por favor.
Ele escondeu sua satisfação por ver Jamie e Skye empalidecerem e acrescentou, incisivo, enquanto eles se afastavam: