Aturdido, ele soubera que o mundo gai-jin tinha seu próprio calendário, totalmente diferente do calendário lunar dos japoneses — e chineses —, que fora a maneira de contar os dias, meses e anos desde o princípio do tempo.
— O primeiro dia de nosso ano, Serata-sama — explicara Misamoto — é entre o 169 dia do primeiro mês e o 229 dia do segundo mês, dependendo da lua-Este ano, o ano do cão, o primeiro dia, que inicia nossa temporada de festivais, e o 189 do primeiro mês. É quando toda a China diz Kung Hay Fat Choy.
Voltando para Iedo, na galé, Yoshi especulara sobre aqueles homens. De um modo geral, sentira-se consternado — os gai-jin eram como monstros sob a forma de homens que tinham vindo das estrelas, suas idéias e atitudes o lado errado de yin e yang.
Mas, para que possamos sobreviver como nação, o Nipão precisa ter navios maiores e canhões, mais poder, para nos protegermos desses demônios estrangeiros. E pelo menos por enquanto, concluíra ele, sentindo-se nauseado, o xogunato deve fazer um acordo com eles.
Nunca irão embora, não todos eles, por sua livre e espontânea vontade. Se não forem estes, outros virão para roubar nossa herança, chineses ou mongóis, ou os peludos das terras geladas da Sibéria, que nos contemplam como cães babando de portos roubados da China. E sempre os ing’erish estarão ao nosso redor. O que fazer com eles?
Isso acontecera no dia anterior. Ontem à noite e naquela madrugada ele estivera absorto em pensamento, quase sem comer, quase sem dormir, consciente também do vazio de sua cama e do vazio de sua vida, as juntas do compartimento de Koiko vazando, assim como as de Anjo, de Ogama e dos outros. Muitas vezes, durante a viagem desde Quioto, pensara na espada limpa, na pureza e paz da morte, o minuto, a hora e o dia escolhidos com um poder divino, pois escolher o momento da própria morte o transformava num deus: do nada ao nada. Não mais o pesar para dilacerá-lo em pétalas de dor.
Muito fácil.
O primeiro raio de sol do amanhecer passou pela janela, refletindo-se em sua espada curta. Estava ao lado da cama, junto com a espada longa, as duas ao fácil alcance de suas mãos, o fuzil ali também, carregado, o que ele chamara de Nori. A espada curta era uma herança de família, feita pelo mestre ferreiro Masumara, outrora possuída pelo xógum Toranaga. Ele olhou para a bainha velha e gasta, e através dela, em sua mente, contemplou a perfeição da lâmina. Estendeu a mão, acariciando o couro, depois subiu pelo cabo, foi pousá-la na pequena tranqueta presa ali. O pai instruíra seu ferreiro a prendê-la ali, antes de presenteá-lo com a espada, formalmente, na presença de seu círculo interno de servidores. Yoshi tinha quinze anos na ocasião e já matara seu primeiro homem, um ronin, que tivera um acesso de loucura perto do castelo de sua família, o Ninho da Águia.
— Isto é para lembrá-lo de seu juramento, meu filho: que empunhará esta lâmina com honra, que para cometer seppuku só usará esta lâmina, que só cometerá seppuku para evitar a captura no campo de batalha, ou se o xógum assim ordenar, e o Conselho de Anciãos confirmar a ordem por unanimidade. Todos os outros Motivos são insuficientes, enquanto o xogunato estiver em perigo.
Uma sentença terrível, refletiu Yoshi, e tornou a se estender na cama, a salvo no momento, naquele quarto no alto de seus aposentos no castelo, onde experimentara tanto prazer. Os olhos retornaram à espada curta. Sua necessidade hoje era intensa. Em sua imaginação, ensaiara o ato tantas vezes que seria suave, gentil e libertador. Muito em breve Anjo enviará homens para me prenderem, e essa será minha desculpa...
Seus ouvidos aguçados ouviram passos. Pés marchando. As mãos pegaram a espada curta e a espada longa, ele assumiu a posição de ataque-defesa.
— Sire?
Yoshi reconheceu a voz de Abeh. Isso não significava segurança, pois Abeh podia ter uma faca na garganta ou ser um traidor... depois de Koiko, todos eram suspeitos.
— O que é?
— O homem Inejin pede para vê-lo.
— Revistou-o?
— Revistei-o.
Yoshi usou a corda que prendera, permitindo-lhe puxar a tranca da porta sem se levantar. Inejin, Abeh e quatro samurais esperavam ali. Ele relaxou.
— Entre, Inejin.
Abeh e os outros de sua guarda pessoal fizeram menção de segui-lo e Yoshi acrescentou:
— Não há necessidade, mas fiquem ao alcance de serem chamados. Inejin fechou a porta, notou a corda para puxar a tranca, mas não fez qualquer comentário, e ajoelhou-se a dez passos de distância.
— Descobriu Katsumata?
— Ele estará em Iedo dentro de três dias, Sire. E irá direto para a casa da Glicínia.
— Aquele covil de escorpiões? — Yoshi não fechara a armadilha contra a mama-san Meikin, pois queria descobrir a verdadeira extensão da conspiração contra ele antes de se vingar... a vingança era melhor quando saboreada calmamente. — Podemos capturá-lo vivo?
Inejin exibiu um estranho sorriso.
— Duvido muito, mas posso lhe contar a história à minha maneira, Sire? — Ele ajeitou o joelho dolorido de forma mais confortável. — Primeiro, sobre os gai-jin: um fato esperado e encorajado desde o início aconteceu. Um espião gai-jin ofereceu os planos de batalha por dinheiro
O interesse de Yoshi foi imediato.
— Não são falsos?
— Não sei, Sire, mas foi sussurrado que continham movimentos de tropas e navios. O preço era modesto e mesmo assim o representante do Bakufu não comprou de imediato, começou a regatear, e a pessoa que estava vendendo se assustou. Com Anjo no comando... — Os lábios rachados se contraíram em repulsa ao nome. — Ele é baka, indigno! Se a cabeça é podre, o corpo é pior.
— Concordo. Uma estupidez.
Inejin acenou com a cabeça.
— Eles esquecem Sun-tzu outra vez, Sire: Permanecer na ignorância da disposição do inimigo, regateando o desembolso de algumas centenas de moedas de prata, é o cúmulo da inumanidade. Por sorte, um informante me comunicou a respeito.
Inejin tirou um pergaminho da manga, largou em cima da mesa Yoshi suspirou, satisfeito.
— So Ka!
— Com a ajuda do meu informante, comprei para lhe dar, Sire, um presente. E também, para grande risco de meu informante, substituí por um pergaminho falso que o Bakufu acabará comprando por uma ninharia.
Yoshi não tocou no pergaminho, apenas contemplou-o em expectativa.
— Por favor, permita que eu o reembolse.
Inejin procurou encobrir seu vasto alívio, pois tivera de penhorar sua estalagem para a Gyokoyama, a fim de obter o dinheiro.
— Procure meu caixa ainda hoje. As informações merecem confiança? Inejin deu de ombros. Ambos conheciam os preceitos de Sun-tzu: Um espião interno é o mais perigoso, aquele que vende segredos por dinheiro. É preciso um homem de gênio para avaliá-los.