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Metade dele sentia vontade de esbravejar, puni-los por seus maus modos, obrigá-los a rastejar na praia, suplicando pelo privilégio de lhe darem o barco de presente. A outra metade aconselhava paciência: Você fez o que deve, o barco é seu, amanhã morrerá com honra pela causa de sonno-joi, esses vermes não têm mais valor do que as cracas no barquinho miserável que me venderam.

— Deixem tudo no barco — disse ele.

Untuoso, o dono fez uma reverência e recuou, inclinado, depois se afastou com os companheiros, todos abençoando a sorte pelo lucro duplo.

O barco era de pesca, pequeno, comum, para um a três homens, com uma pequena vela e um único remo na popa. Parte do treinamento de samurai era o uso de barcos para curtas distâncias, atravessar rios ou alcançar navios ou galés ao largo de águas costeiras, por isso todos sabiam manobrá-los. A notícia de que ele comprara um barco voaria por toda a aldeia, mas isso não tinha importância. Quando o shoya e os outros descobrissem o uso provável, já seria tarde demais.

Satisfeito de que o barco se encontrava seguro, ele começou a atravessar a cidade dos bêbados, através das vielas apinhadas, passando por cima de corpos de homens embriagados e do lixo, repugnado com a sujeira. Taira diz que sua Londres é a cidade mais limpa, maior e mais rica do mundo, mas não acredito... não se tantos de sua gente vivem assim, com o resto da colônia não estando muito melhor. Pegando um atalho, ele avançou por uma viela menor. Homens passavam, mendigos estendiam a mão, olhos espiavam desconfiados de portais, mas ninguém o incomodou.

A terra de ninguém, como sempre, se encontrava coberta de mata, fedendo, o principal vazadouro de lixo da colônia. Uns poucos vagabundos esfarrapados vasculhavam pelo lixo mais recente. Observaram-no por um instante. Os olhos de Hiraga se desviaram para o poço à frente. A tampa de madeira quebrada, que ocultava a passagem secreta para a Yoshiwara, parecia intacta. O rosto de Ori aflorou em sua memória, e o tempo que passaram lá embaixo, quando estava disposto a matá-lo, e Ori jogara — ou fingira jogar — a cruz de ouro nas profundezas. Ori era baka ao desperdiçar sua vida por causa daquela mulher. Bem que poderíamos aproveitá-lo amanhã. Ele tratou de remover Ori de sua mente.

Agora, todo seu ser se concentrava no ataque. Todo o raciocínio em contrário desaparecera. Havia um consenso, Akimoto a favor, exultante, Takeda e o sensei. Portanto, ele também era a favor. O barco estava pronto. Agora, buscaria Akimoto e acertariam os detalhes finais do plano. Na verdade, Hiraga sentia-se contente também. Morreria no esplendor da glória, cumprindo os desejos do imperador. O que mais um samurai podia desejar da vida?

Com a violência súbita de um banho gelado, ele foi arrancado da euforia e desapareceu numa porta. Três soldados ingleses postavam-se diante da casa do shoya, mais dois saíam da choupana ao lado, que ele e Akimoto alugavam. Akimoto se encontrava entre os soldados, berrando a plenos pulmões uma das poucas frases em inglês que aprendera:

— Sinto muito, não compreender Nakama!

— N-a-k-a-m-a — disse o sargento, devagar, bem alto. — Onde ele está?

Uma pausa e o sargento acrescentou, ainda mais alto:

— Onde está Nakama?

— Nakama? — A voz de Akimoto também era alta e clara, sem dúvida tentando alertá-lo, se por acaso estivesse nas proximidades. — Nakama não compreender sinto muito.

Em japonês, Akimoto disse:

— Alguém traiu alguém. — E voltou ao inglês guturaclass="underline" — Nakama não compre...

— Cale-se! — berrou o sargento, furioso. — Cabo, este idiota não sabe de nada. Butcher, você e Swallow ficam aqui, até mister Nakama voltar, e peçam a ele... isso mesmo, peçam, um convite... para acompanhá-los, pois Sir William quer falar com o homem. Mas não deixem de levar o patife. Você... — O sargento espetou um dedo de ferro no peito de Akimoto, enquanto acrescentava: — Venha comigo, para o caso de o chefe querer falar também com você.

Protestando em japonês, a voz bem alta, Akimoto acompanhou-os, e depois repetiu várias vezes, em inglês, “Nakama não compreender”.

Ao se recuperar do choque, e constatar que era seguro, Hiraga saiu do portal, pulou uma cerca, e correu de volta para a terra de ninguém. Ali, agachou-se no vão de porta de um barraco. Ainda não era seguro correr para o poço, havia claridade demais e os três homens vasculhando o lixo se encontravam muito próximos, pareciam ameaçadores. Tinha de manter em segredo a passagem pelo poço.

Quem nos traiu?

Não havia tempo para pensar sobre isso agora. Ele se encolheu ainda mais nas sombras, quando um dos homens se aproximou, murmurando e praguejando pelo pouco que encontrara, um saco ensebado numa das mãos. Todos os três eram esqueléticos e imundos. Um se aproximou das sombras em que se escondia, mas passou sem vê-lo. Mais meia hora e a luz desapareceria, não havia outra coisa a fazer que não esperar. Subitamente, o vão de porta foi bloqueado.

— Pensou que eu não tinha visto você, hem? — disse o homem, a voz rouca, carregada de ameaça. — O que está fazendo?

Hiraga empertigou-se devagar. Tinha a mão na pequena pistola no bolso. E depois viu a faca aparecer no punho que mais parecia uma garra, o homem desferir um golpe violento para a frente. Só que Hiraga foi mais rápido, segurou a mão, acertou uma cutilada na garganta do homem. Ele ganiu como um porco estripado e arriou no chão. No mesmo instante, os outros dois levantaram os olhos e se adiantaram apressados para investigar.

Pararam abruptamente. Hiraga aparecia agora no vão de porta, a pistola numa das mãos, a faca na outra, por cima do homem que se contorcia na terra, sufocado. Facas apareceram e os dois homens atacaram. Hiraga não hesitou e arremeteu contra um dos homens, que saiu correndo, proporcionando-lhe a abertura de que precisava. Passou em disparada entre os dois, correndo para a cidade dos bêbados, não querendo perder tempo numa luta. Momentos depois, alcançou uma rua transversal, mas descobriu que o chapéu caíra na corrida. Olhou para trás e viu um dos homens pegá-lo, com um grito. Em segundos, o outro homem também pôs mão no chapéu e os dois se puseram a brigar e a praguejar por sua posse.

O peito arfando, Hiraga deixou que ficassem com o chapéu. Outro olhar para o céu. Seja paciente. Depois que eles forem embora, você poderá ir até o poço. Não deve revelar sua existência, pois é essencial para o ataque. Seja paciente Compre um chapéu ou um gorro. O que saiu errado?

— Para onde será que ele foi?

— Não pode estar longe, Sir William — garantiu Pallidar. — Coloquei homens nos portões e na ponte para a Yoshiwara. É bem provável que ele esteja numa das estalagens. Uma questão de tempo antes que apareça. Quer que o ponhamos a ferros?

— Não. Quero apenas que o tragam até aqui, desarmado, sob vigilância.

— E esse sujeito?

Akimoto estava sentado, de costas na parede, um soldado ao lado. Já fora revistado.