— Não posso, não esta noite. Ainda não terminei de arrumar minhas coisas. — Jamie sorriu, depois gesticulou para o corredor. — Angelique está usando o escritório junto com você?
— Isso mesmo e é um prazer para mim. Melhor do que deixar Angelique ir receber visitantes em sua suíte lá em cima, esse homem em particular. Não posso dizer que gosto dele.
— André é uma boa pessoa, sua música é excelente, sem dúvida a melhor que temos aqui. Espero que sejam boas as notícias trazidas pelo Prancing Cloud.
— Eu também, mas duvido muito. Acha que Tess está a bordo?
— A idéia me ocorreu. — Jamie sorriu, não mais um empregado de Tess. — Explicaria a mudança de curso do Cloud. É isso o que Dirk teria feito.
— Ela não é Dirk, mas é muito mais astuta... o que é uma pena, meu caro.
Não havia amor perdido entre os meios-irmãos e Tess Struan, mas uma cláusula no testamento de Dirk estipulava que se os dois meninos se destacassem nos estudos seriam aproveitados na Casa Nobre, ao limite de sua capacidade. Os dois eram inteligentes, tinham contatos com amigos de Eton e da universidade em altos postos, espalhados pela aristocracia, na City e no Parlamento, onde Frederick acabava de ganhar um assento, o que os tornava ainda mais valiosos. Mesmo assim, ambos sabiam que Tess Struan os dispensaria se não fosse pela cláusula.
— Espero que ela não tenha vindo nos fazer uma visita... o que seria bastante incômodo.
McFay riu.
— Vamos correr as escotilhas.
— Olá, André.
— Boa noite, Angelique.
Ela sentava em sua cadeira predileta, perto da janela, as cortinas abertas para a enseada.
— É o Prancing Cloud?
— É, sim.
— Ótimo. Ela está a bordo?
André exibiu um sorriso irônico.
— Isso explicaria a volta do clíper.
— Não faz diferença, de qualquer maneira — murmurou Angelique, embora sentisse um frio no estômago. — Aceita um drinque?
— Obrigado. — Ele viu a garrafa de champanhe aberta no balde de gelo e um copo pela metade na mesa. — Posso?
— À vontade.
Tornara-se costume de Angelique contemplar o pôr-do-sol, o crepúsculo e o cair da noite, com champanhe. Apenas um copo, a fim de se preparar para a longa noite, e depois a madrugada interminável. Seu padrão de sono mudara. Não mais encostava a cabeça no travesseiro para mergulhar no sono no mesmo instante, só bordando ao amanhecer. Agora, o sono se lhe esquivava. A princípio, isso a assustara, mas Babcott a convencera de que o medo só servia para agravar a insônia.
— Não precisamos de mais que oito ou dez horas, por isso não deve se preocupar. Aproveite o tempo em seu benefício. Escreva cartas, ou seu diário, tenha bons pensamentos... e não se preocupe. Ontem, Angelique escrevera:
Querida Colette:
O conselho que ele me deu funciona, mas acontece que não percebeu o melhor aproveitamento, que é o de PLANEJAR, porque aquela mulher está tramando a minha queda.
Se Deus quiser, estarei em Paris em breve e poderei então lhe contar tudo. Às vezes é quase como se minha vida aqui fosse uma peça de teatro, ou uma história de Victor Hugo, e Malcolm, o pobre coitado, nunca existiu. Mas gosto do sossego e me sinto contente com a espera. Só mais alguns dias, e saberei sobre a criança, se vai haver ou não. Assim espero, e rezo, rezo e rezo para estar esperando um filho de Malcolm... e também para que o seu parto seja tranqüilo e nasça outro menino.
Tenho de ser sensata. Só posso contar comigo mesma, por aqui. Jamie é um bom amigo, mas não pode ajudar muito... não trabalha mais na Casa Nobre, e o novo gerente, Albert MacStruan, é gentil, um perfeito cavalheiro, britânico bem-nascido, mas só me tolera por enquanto... até ELA ordenar o contrário. Sir William? Ele é o governo, o governo britânico. Seratard? Só Deus sabe se ele de fato ajudará, mas será apenas pelo proveito que possa tirar de mim. O Sr. Skye? Ele faz o melhor que pode, mas todos o odeiam. André? Ele é muito esperto, e sabe demais, e creio que a armadilha em que se encontra o está deixando louco (mal posso esperar para saber o que VOCÊ PENSA!!!). Minha única esperança é Edward Gornt. Ele já deve ter chegado a Hong Kong e já se encontrou com ela, a esta altura. Minhas orações — e sei que as suas também — pelo êxito dele são abundantes e diárias.
Assim, aproveito minhas noites acordadas para planejar. Agora, tenho muitos planos e idéias excelentes sobre a melhor maneira de enfrentar todas as emergências possíveis... e muita força para lidar com as que não ousei considerar; por exemplo, se Edward me falhar, ou, Deus me livre, nunca chegar, pois há rumores de terríveis tempestades nos mares da China, normais nesta época do ano. A Cooper-Tillman, do pobre Dmitri, perdeu outro navio. Os pobres marujos, como o mar é terrível, e como são bravos os homens que por ele navegam!
André diz, com toda razão, que não posso sair daqui, nem tomar uma iniciativa, até que ELA anuncie sua posição. Sou a viúva de Malcolm, é o que todos dizem, o Sr. Skye registrou todos os tipos de documentos com Sir William, e mandou mais para Hong Kong, mais ainda para Londres. Tenho dinheiro suficiente e posso permanecer aqui por tanto tempo quanto quiser. Albert MacStruan disse que posso usar a sala de Jamie sempre que estiver vaga; tenho mais dez vales que Malcolm fez para mim, deixando a quantia em branco — não foi previdente de sua parte? —, que Jamie e agora Albert concordaram em honrar, de cem guinéus cada um.
Quando ELA se manifestar, entrarei na batalha. Sinto que será até a morte, mas posso lhe garantir, minha querida Colette, que a morte não será aminha... será o Waterloo dela, não o meu, a França será vingada. Sinto-me muito forte, muito capaz...
Ela observava André, esperando que ele começasse. A expressão de André era dura, a pele pálida e esticada, ele emagrecera. O primeiro copo fora esvaziado. E depois o segundo. Agora, ele se pôs a tomar o terceiro.
— Você está mais linda do que nunca.
— Obrigada. Como vai sua Hinodeh?
— Mais linda do que nunca.
— Se a ama tanto, André, por que seus lábios se contraem e os olhos se esbugalham de raiva quando menciono o nome dela... disse que eu podia interrogá-lo a respeito.
Poucos dias antes, ele falara sobre o acordo. Em parte, não tudo. Irrompera quando o desespero o dominara.
— Se era tão intransigente em fazer amor no escuro e com o preço absurdo que Raiko exigia, por que concordou, em primeiro lugar?
— Eu... era necessário — murmurou ele, sem fitá-la.
André não podia contar o verdadeiro motivo. Era suficiente ver os lábios de Seratard se contraírem e evitar qualquer contato físico desde então, tomando cuidado para nunca usar os mesmos talheres, nem o mesmo copo, embora a doença só fosse contraída de um homem ou uma mulher... ou será que não?