— O que vai acontecer, Phillip?
— Não sei. Esperamos que o problema desapareça em breve. Uma pena que tivéssemos de descrever Nakama, qual é a sua aparência agora, e com isso ele não terá muita chance de escapar. O que é lamentável, porque ele era um bom sujeito, me ajudou muito. Não acredito numa só palavra dessa alegação de que ele é assassino. Não arrancamos muitas informações do outro sujeito, o amigo de Nakama, de uma família de construtores de barcos de Choshu. Até levei-o a dar uma olhada em uma de nossas fragatas. Um sujeito muito simpático, mas bastante estúpido não sabia sobre Nakama ou não quis dizer nada. Sir William não queria entregá-lo ao Bakufu, por isso deixou-o ir embora. Uma coisa terrível, Angelique, pois Nakama me ajudou tremendamente... e não apenas com o japonês... se não fosse por ele...
Mais tarde, tomaram uma sopa juntos, e Phillip acabara admitindo, por insistência dela, depois de fazê-la jurar que guardaria segredo, que tinha uma garota, uma garota especial, na Yoshiwara.
— Ela é linda e simpática, Angelique, acho que posso arrumar o dinheiro para o contrato sem sacrificar o Tesouro, a ligação é maravilhosa...
Angelique se divertira por ele parecer tão jovem, invejara-o por seu amor simples e se sentira, comparada com Phillip, muito adulta e sofisticada.
— Eu gostaria de conhecê-la um dia — sugerira ela. — Posso facilmente me esgueirar até sua Yoshiwara, vestida como homem.
— Oh, Deus, não, Angelique! Não poderia fazer isso! Não deve!
Poderia ser bastante divertido fazer isso, pensou ela, rindo, e virou-se na cama, quase adormecida. André me levará. Gostaria de conhecer essa Hinodeh em quem tanto investi. Como será que ela parece?
No limiar do sono, ela teve um espasmo.
Outra cólica, diferente. E mais outra. Totalmente desperta agora. Apreensiva, ela esfregou a barriga e o ventre, a fim de atenuar a dor. Mas não desapareceu e ela compreendeu, com toda certeza, que era a dor antiga e familiar, com a sensação de estar um pouco inchada.
Começara. E seguiu-se o fluxo de sangue. Com o fluxo, todo o seu anseio, preocupação e esperança irromperam. Num desespero total, Angelique começou a chorar, comprimiu a cabeça contra os travesseiros.
— Oh, Malcolm, eu esperava tanto, mas tanto, agora nada me resta para dar, nada restou de você, oh, Malcolm, Malcolm, sinto muito, lamento tanto. Oh, Deus, perdoe... seja feita a sua vontade...
Chorando e chorando, depois de uma eternidade, chorando até dormir, ela tinha mais lágrimas para derramar.
— Miss, acorde! Miss tai-tai, café, hem!
Enquanto ela ainda continuava nas brumas do sono, Ah Soh bateu com a bandeja na mesa ao lado da cama e Angelique sentiu o aroma quente e divino de café fresco — presente de Seratard e um dos poucos serviços que Ah Soh podia ou queria fazer direito — envolvendo-a, trazendo-a para o dia sem sofrimento.
Ela sentou na cama, espreguiçou-se, atônita e feliz por se sentir tão alerta, tão bem. As cólicas haviam desaparecido, a dor se desvanecera para o padrão normal, melhor do que o habitual, a sensação de inchaço menor do que o habitual.
E o melhor de tudo, o desespero a deixara. É o milagre DELA, pensou Angelique, reverente. Durante o último mês, em suas orações noturnas à Virgem Maria falando, pedindo, suplicando, uma noite, extenuada pela ansiedade, ela ouvira: “Deixe tudo comigo, minha criança, a decisão é MINHA, não sua.” Ouvira sem ouvir com os ouvidos, mas com seu eu interior. “MINHA decisão, tudo, descanse em paz.” A ansiedade se dissipara.
Era a decisão dela e isso era maravilhoso! Angelique aceitaria o veredito DELA. A vontade de Deus. E fora o que fizera.
Impulsiva, Angelique ajoelhou-se ao lado da cama, fechou os olhos, pediu a sua bênção, expressou seus fervorosos agradecimentos, e outra vez disse que sentia muito, mas agradecia pela remoção do fardo, Sua vontade será feita. Depois, tornou a se meter sob as cobertas, pronta para o café e o mundo. O café naquele momento, nove horas, era um costume aos domingos, mal tinha tempo suficiente para tomar um banho, se vestir e ir à igreja.
Igreja! Por que não?, pensou ela, devo apresentar meus agradecimentos, mas sem confissão.
— Ah Soh, traga meu banho e...
Ah Soh a fitava aturdida, os olhos vidrados. Abruptamente, ela compreendeu que a criada devia ter visto manchas de sangue na parte de trás da camisola. Ah Soh apressou-se em dizer:
— Buscar banho.
Ela se encaminhou para a porta, mas Angelique chegou lá na sua frente e empurrou-a de volta.
— Se contar a alguém, arrancarei seus olhos!
— Não compreender, miss tai-tai — balbuciou Ah Soh, apavorada com o veneno no rosto e na voz de Angelique. — Não compreender!
— Ah, sim, claro que compreende! Dew neh loh moh-ah.
Angelique disse a imprecação em cantonês como ouvira Malcolm pronunciá-la uma ocasião, quando ficara furioso com Chen, que empalidecera ao ouvir. Ele nunca lhe dissera o que as palavras significavam, mas causaram o mesmo efeito em Ah Soh, cujas pernas quase cederam.
— Aiiiii!
— Se você falar, Ah Soh, tai-tai vai... — Furiosa, Angelique esticou as unhas compridas a um milímetro dos olhos da criada chinesa e manteve-as ali. — Tai-tai fazer isto! Compreender?
— Compreender! Segredo, tai-tai! — A assustada criada balbuciou alguma coisa em cantonês, levou os dedos aos lábios, imitando um grampo. — Ah Soh não falar! Ah Soh compreender!
Controlando sua fúria, embora o coração ainda estivesse disparado, Angelique empurrou a mulher em direção à cama e tornou a se deitar. Autoritária, apontou para a xícara de café.
— Dew neh loh moh! Sirva meu café!
Cheia de humildade e medo genuíno, Ah Soh serviu o café, entregou a xícara e ali ficou parada, submissa.
— Não fale nada, arrume a cama, limpe as roupas! Segredo!
— Compreender, tai-tai, não falar, segredo, compreender.
— Não fale nada! Ou... — As unhas de Angelique cortaram o ar. —O banho! Ah Soh retirou-se apressada para buscar a água quente, mas antes, ofegante foi sussurrar a notícia para Chen, que revirou os olhos para o céu, e disse:
— Ah, o que tai-tai Tess vai fazer agora?
Depois, Chen saiu correndo, a fim de enviar a notícia pelo navio mais veloz para o ilustre compradore Chen, que lhes ordenara que o informassem de imediato, qualquer que fosse o custo.
O café estava delicioso. Acalmou o estômago e o espírito de Angelique, desfez a ligeira intumescência. Uma das autênticas alegrias de Angelique no mundo era o café da manhã, ainda mais com croissants e Colette, nos Champs-Elysées, num dos elegantes cafés com mesinhas na calçada, lendo a última circular da corte e vendo o mundo passar.