Yoshi estremeceu. Na ocasião, não entendia a que magnanimidade o pai se referia. Quase morrera durante aqueles dias, mas cumprira as ordens. Como recompensa por sua autodisciplina, o pai, daimio de Mito, dissera-lhe que seria adotado pela família Hisamatsu e se tornaria herdeiro desse ramo do clã Toranaga.
— Você é meu sétimo filho. Assim, terá sua própria herança e entrará numa linhagem um pouco superior à de seus irmãos.
— Está bem, pai — murmurara ele, contendo as lágrimas.
Na ocasião, não sabia que estava sendo preparado para ser xógum, nem isso jamais lhe fora dito. Quando o xógum Iyeyoshi morrera, da doença das erupções, quatro anos antes, Yoshi tinha vinte e dois, estava pronto para a função, e o pai o propusera. Mas o Tairo Li se opusera, e prevalecera — eram suas forças pessoais que dominavam os portões do palácio.
Seu primo Nobusada fora designado. Yoshi, sua família, o pai e todos os partidários influentes foram postos sob prisão domiciliar. Só depois do assassinato de Li é que ele recuperara a liberdade e fora reintegrado em suas terras e honrarias, junto com os outros sobreviventes. O pai morrera no confinamento.
Eu deveria ser o xógum, pensou Yoshi, pela milionésima vez. Estava preparado, bem treinado, poderia evitar a deterioração do xogunato, poderia ter promovido uma nova aliança entre o xogunato e todos os daimios, e poderia lidar com os gai-jin. Teria aquela princesa como esposa, nunca assinaria aqueles acordos, nem permitiria que as negociações nos fossem tão desfavoráveis. Teria sabido enfrentar Townsend Harris e iniciaria uma nova era de cuidadoso intercâmbio, para absorvermos o mundo exterior em nosso ritmo, não no deles!
Mas não sou o xógum. Nobusada foi eleito corretamente, os tratados existem, a princesa Yazu existe, Sanjiro, Anjo e os gai-jin arremetem contra nossos portões.
Ele tornou a estremecer. Preciso ser mais cauteloso. O veneno é um antigo perigo, uma flecha de dia ou de noite, centenas de ninjas assassinos à esmo oferecendo seus serviços a quem pagar mais. E há ainda os shishi. Tem de haver uma solução! Mas qual?
Aves marinhas circulavam e grasniam sobre a cidade e o castelo, interrompendo seu fluxo de pensamentos. Yoshi estudou o céu. Nenhum sinal de que mudaria ou de tempestade, embora aquele fosse o mês de mudança, quando os grandes ventos começavam a soprar, trazendo o inverno. E o inverno será ruim este ano. Não haverá uma grande fome, como há três anos, mas as colheitas foram deficientes, ainda menores do que no ano passado...
Espere! O que foi mesmo que Anjo disse que me lembrou de alguma coisa?
Ele virou-se, chamou um dos seus guardas, num crescente excitamento e disse:
— Traga aquele espião aqui, o pescador... como é mesmo seu nome? Ah, sim Misamoto. Quero-o em meus aposentos, secretamente. Ele está confinado na casa da guarda oriental.
8
Terça-feira, 16 de setembro:
Ao amanhecer, os canhões da nave capitânia dispararam a saudação de onze tiros, quando o cúter de Sir William se aproximou. Da praia veio uma tênue aclamação, cada homem sóbrio ali presente para assistir à partida da esquadra para Iedo. O vento aumentava de intensidade, o ar se mantinha calmo, o céu um pouco nublado. Sir William embarcou formalmente, acompanhado por Phillip Tyrer; o resto de sua equipe já se encontrava a bordo de diversos navios de guerra. Os dois homens usavam fraque e cartola. Tyrer tinha o braço numa tipóia.
Avistaram o almirante Ketterer a esperá-los no convés principal, John Marlowe ao seu lado, ambos em uniforme de gala — chapéu de bicos, túnica com alamares dourados e botões azuis, camisa branca, colete, calção, meias, sapatos de fivela e espada reluzente —, e no mesmo instante Phillip Tyrer pensou: Droga! Como John Marlowe sempre se mostra bonito e elegante, mas nem por isso menos viril, da mesma forma que Pallidar em seu uniforme! Ah, se eu tivesse um uniforme de gala assim, ou qualquer outra roupa, diga-se de passagem, que pudesse rivalizar com essas, e ainda por cima sou pobre como um camundongo de igreja, em comparação com os dois, nem sequer fui promovido a subsecretário. Droga! Não há nada como um uniforme para favorecer um homem, e projetá-lo aos olhos de uma moça...
Ele quase esbarrou em Sir William, que parara no último degrau, enquanto o almirante e Marlowe o saudavam, ignorando-o por completo. Concentre-se, pensou Tyrer, você também está de serviço, à disposição do poderoso! Tome cuidado, participe de tudo.
— Bom dia, Sir William. Seja bem-vindo abordo.
— Obrigado. Bom dia, almirante Ketterer.
Sir William tirou a cartola, um gesto seguido por Tyrer, os fraques dos dois enfunados pelo vento.
— Podemos partir, se assim desejar. Os outros ministros já estão na nave Capitânia francesa.
— Ótimo.
O almirante gesticulou para Marlowe, que bateu continência e se afastou para falar com o comandante do navio, na ponte de comando aberta, um pouco à frente da única chaminé e do mastro principal. Ali, ele tornou a bater continência e disse:
— Os cumprimentos do almirante, senhor. Podemos partir para Iedo.
As ordens foram rapidamente transmitidas. Os marinheiros soltaram três vivas, no momento em que as âncoras eram recolhidas. Na apertada sala da caldeira, três conveses abaixo, os foguistas, despidos da cintura para cima, jogaram mais carvão nas fornalhas, sob um canto ritmado, tossindo e espirrando no ar sempre impregnado de poeira de carvão. No outro lado da antepara, na sala das máquinas, o engenheiro-chefe entoou “meio à frente” e os imensos motores passaram a girar o eixo da hélice.
O navio era o H.M.S. Euryalus, construído em Chatham, oito anos antes, com três mastros e uma chaminé, uma fragata cruzadora de madeira, com 3.200 toneladas de arqueação, 35 canhões, uma tripulação normal de 350 oficiais, marujos e fuzileiros, enquanto nos conveses inferiores havia noventa foguistas e pessoal da sala de máquinas. Hoje, todas as velas se achavam recolhidas e os conveses preparados para a ação.
— Um dia aprazível, almirante — comentou Sir William.
Estavam no tombadilho superior, com Phillip Tyrer e Marlowe, que haviam se cumprimentado em silêncio, pairando por perto.
— Por enquanto — concordou o almirante, contrafeito, sempre pouco à vontade na presença de civis, ainda mais de alguém como Sir William, que era seu superior. — Meus alojamentos estão à disposição lá embaixo, se desejar se recolher.
— Obrigado.
As gaivotas mergulhavam e gritavam na esteira do navio. Sir William contemplou-as por um momento, tentando se livrar de sua depressão.
— Obrigado, mas prefiro ficar aqui em cima. Já conhece o Sr. Tyrer, não é mesmo? Ele é nosso novo aprendiz de intérprete.
Pela primeira vez, o almirante admitiu a presença de Tyrer.