— Obrigado, mas agora eu quero ver...
— Ver? Olhar ali, senhor oficial!
Tyrer apontou na direção da cidade e ao redor, seu japonês se tornando cada vez mais incompreensível, dando um passo para o lado, cada vez que o homem tentava contorná-lo.
— Ver o que fogo...
— Saia da frente! — disse o samurai, furioso, a respiração com o cheiro de daikon. — Saia da frente!
Mas Tyrer fingiu não entender, sacudiu os braços para bloqueá-lo, tentando dar a impressão de que não era intencional, tomando cuidado para não tocá-lo, ao mesmo tempo em que dizia como a devastação fora terrível e como os samurais haviam demonstrado grande competência... Jamie e os outros se encontravam às suas costas, e por isso não tinha como calcular quanto tempo ainda precisava ganhar.
— Baka! — rosnou o oficial.
Tyrer viu o rosto do homem se contrair em raiva e preparou-se para o golpe, mas nesse instante ouviu Jamie berrar:
— Vamos partir logo, pelo amor de Deus!
O capitão empurrou-o para o lado, bruscamente, e correu na direção do barco. Ofegando, Tyrer recuperou o equilíbrio e virou-se para avistar o cúter fazendo a volta, a toda velocidade, os três homens abaixados na cabine, o contramestre na casa do leme, um marujo na proa, as luzes na cabine apagadas no instante em que o samurai alcançou a extremidade do cais, gritando para que voltassem, a ordem abafada pelo barulho do motor. Um momento antes de as luzes se apagarem e de Hiraga e Akimoto virarem as costas, Tyrer teve a impressão de que podia ver seus rostos com toda nitidez... e se os vira, o oficial também vira.
— É minha imaginação — murmurou Phillip, já se afastando, no andar mais rápido de que era capaz.
Ergueu o chapéu para os samurais em torno da fogueira, que responderam de uma maneira superficial, e ao ouvir o grito do capitão, “Ei, você! Venha cá!”, já estava se fundindo com a multidão. Quando achou que era seguro, desatou a correr e só voltou a respirar quando se encontrava são e salvo na legação.
— Por Deus, Phillip! — exclamou Bertram, os olhos arregalados. — O que aconteceu?
— Ora, vá se foder! — balbuciou Tyrer, ainda aflito com a fuga por um triz.
— Por que ele deveria fazer isso? — indagou Sir William, da porta de sua sala, o rosto tenso, a voz ríspida.
— Oh... desculpe, senhor, foi... apenas uma brincadeira.
Um grunhido irritado foi o comentário.
— Phillip, você está de miolo mole! Onde se meteu? Há uma mensagem do Bakufu com a indicação de urgente em sua mesa, à espera de tradução, um despacho para Sir Percy que tem de ser copiado, antes de seguir no Atlanta Belle esta noite, quatro pedidos de pagamento do seguro para autenticar... já aprovei e assinei. Depois de acabar tudo, venha falar comigo. Estarei aqui, ou no cais, despedindo-me dos passageiros... Não fique parado aí! Trate de se apressar!
Sir William tornou a entrar em sua sala, fechou a porta, encostou-se nela. Seus olhos foram inexoravelmente atraídos para a pasta de André, bem no meio da mesa. E a tristeza tornou a aflorar.
Depois que Angelique fora embora, ele ficara quase sem se mexer por uma hora, ou mais, tentando tomar uma decisão, desesperado em fazer o que era certo, pois se tratava de fato de uma questão de vida e morte. A mente vagueara para os caminhos de sua própria experiência: a infância na Inglaterra, o posto em Paris, São Petersburgo, sua casa ali, o jardim, rindo com Vertinskya, na primavera, verão, outono e inverno, amando-a; o retorno à Inglaterra, missões nos campos de batalha da Criméia, momentos turbilhonantes, sinistros e indistintos, que ainda o assustavam.
Sentia-se contente pela voz de Phillip tê-lo atraído de volta à normalidade. Mais uma vez, seus olhos vaguearam pela sala, passando pelo fogo e a pasta, fixando-se no rosto jovem e adorável, em miniatura, que lhe sorria. Sentiu o coração partir, como sempre acontecia, mas logo se recuperou. Um pouco menos a cada vez.
Adiantou-se, pegou a miniatura, examinou-a, cada pincelada já gravada em sua memória. Se eu não tivesse o retrato, teria esquecido o rosto dela, como Angelique com seu Malcolm?
— Não há resposta para isso, Vertinskya, minha querida — murmurou ele, desconsolado, à beira das lágrimas, repondo a miniatura na mesa. — Talvez esquecesse... seu rosto... mas nunca você, nunca, nunca, nunca você.
E por mais que tentasse reviver o tempo em que se sentira mais vivo, a pasta de André era como uma porta de ferro a separá-los.
Ele que se dane!
Isso não importa, tome a decisão. Basta de vacilação, ordenou ele a si mesmo. Volte ao trabalho, enfrente o problema, a fim de poder continuar em frente, para coisas mais importantes, como Yoshi e a guerra iminente contra Satsuma... Você é o ministro de sua majestade britânica! Aja como tal!
A única maneira correta e apropriada de lidar com a pasta de André é lacrá-la, escrever um relatório particular sobre o que aconteceu, e quando, o que foi dito e por quem, despachar tudo para Londres e deixar que eles decidam. Há muitos segredos em seus cofres e arquivos. Se eles quiserem que seja mantido em segredo, cabe-lhes tomar essa decisão.
Muito bem, esse é o único curso correto e apropriado.
Confiante de que estava tomando a decisão acertada, Sir William pegou os papéis e jogou-os um a um no fogo, cantarolando para si mesmo, observando-os se enroscarem, enegrecerem e se transformarem em cinzas. Não é uma atitude incorreta. Tais documentos não constituem uma prova irrefutável e, de qualquer maneira, a pobre moça foi uma vítima, André era um agente secreto perigoso e ativo de uma potência inimiga e se for autêntica a metade dos males relatados em seu dossiê secreto, ele bem que merecia ser detonado uma dúzia de vezes. Verdades ou mentiras, neste caso o pó reverte ao pó.
Depois de acabar, ele levantou seu copo para a miniatura, sentindo-se muito bem.
— A você, minha querida — murmurou Sir William.
62
Já era quase meia-noite quando Tyrer finalmente deixou a legação, apressado, e se encaminhou para o cais da Struan. Sua cabeça doía como nunca antes, não tivera tempo para jantar, muito menos para pensar sobre Hiraga ou Fujiko, nenhum tempo para fazer outra coisa que não trabalhar. Levava uma bolsa oficial de despachos do governo de sua majestade e tinha no bolso a tradução que fizera por último, desejando ter sido a primeira coisa. Acelerou os passos.
Havia uma multidão no cais. Umas poucas pessoas ali se encontravam para se despedir dos passageiros, mas a maioria cercava ruidosamente o comissário de bordo do Belle, que recebia a correspondência de última hora para as matrizes em Hong Kong e Xangai — corretores de seguros, fornecedores, armadores, bancos —, qualquer um e todos que precisavam tomar conhecimento do incêndio e danos causados. Ele avistou Angelique conversando com Gornt. No outro lado da multidão, Pallidar falava com alguns oficiais que embarcariam como passageiros. Sir William estava perto da beira do cais, absorvido em conversa com Maureen Ross. Ao vê-la, Tyrer lembrou-se no mesmo instante de Jamie e Hiraga, de sua promessa a Jamie de esclarecer o caso dos “estudantes” com seu superior. Ele avançou pela multidão.