— Limpem a cabeça e a apresentem a lorde Anjo. — Uraga olhou para os portões do castelo e murmurou, antes de se afastar: — Os covardes me repugnam.
Naquela noite, quando era seguro, Hiraga e os outros se esgueiraram do porão, que fora escolhido com antecedência. Por caminhos diferentes, seguiram para sua casa segura.
O céu estava nublado, a noite era escura, o vento forte espalhava a chuva por todos os lados. Não vou sentir frio, não vou sentir desconforto, sou um samurai, Hiraga disse a si mesmo, seguindo o padrão de treinamento que era mantido em sua família desde que podia se lembrar. Assim como treinarei meus filhos e filhas... se meu karma é ter filhos e filhas, pensou ele.
— É tempo de você casar — dissera o pai, um ano antes.
— Concordo, pai. Respeitosamente, solicito que mude de opinião, e me permita escolher meu próprio casamento.
— Primeiro, é dever do filho obedecer ao pai, segundo, é dever do pai escolher as esposas de seus filhos e os maridos de suas filhas, terceiro, o pai de Sumomo não aprova, ela é Satsuma, não Choshu, e por último, embora desejável, ela não é aceitável. O que me diz da moça Ito?
— Por favor, pai, peço que me perdoe. Concordo que minha escolha não é perfeita, mas a família dela é samurai, ela foi treinada como samurai, e me conquistou por completo. Eu lhe suplico. Tem quatro outros filhos... só tenho uma vida, e nós, você e eu, concordamos que será devotada a Sonno-joi; assim, será uma vida curta. Conceda-me isso como o desejo de toda a minha vida.
Pelo costume, o pedido era da maior gravidade, o que significava que, se atendido, excluiria a possibilidade de qualquer outra solicitação.
— Está bem — admitira o pai, relutante. — Mas não como o desejo de toda uma vida. Pode firmar o compromisso quando ela fizer dezessete anos. Eu a receberei de braços abertos em nossa família.
Isso acontecera no ano passado. Poucos dias depois, Hiraga deixara Shimonoseki, supostamente para se juntar ao regimento de Choshu em Quioto, mas na verdade para se declarar por Sonno-joi, tornar-se um ronin... e pôr em prática sua adesão secreta e treinamento de quatro anos.
Agora era o nono mês. Dentro de três semanas, Sumomo completaria dezessete anos, mas agora ele se encontrava tão à margem da lei que seria impossíve um retorno seguro. Até ontem. O pai lhe escrevera: Por mais espantoso que possa parecer, nosso lorde Ogama ofereceu o perdão a todos os guerreiros que aderiram a Sonno-joi, e vai restaurar todos os estipêndios, se voltarem de imediato, renunciarem à heresia, e outra vez lhe jurarem fidelidade, em público. Você deve aproveitar a oportunidade. Muitos estão voltando.
A carta o entristecera, quase abalara sua determinação. “Sonno-joi é mais importante do que a família, do que lorde Ogama, e até mesmo do que Sumomo, dissera a si mesmo, muitas vezes. “Lorde Ogama não merece confiança. Quanto ao meu estipêndio...”
Por sorte, o pai gozava de relativa prosperidade, em comparação à maioria, e por causa do avô shoya fora promovido a hirazamurai, a terceira categoria de samurai. Acima, só havia o samurai sênior, hatomoto e daimio. Abaixo de hirazamurai, ficavam todos os outros — goshi, ashigaru, samurai rural e infantes, que pertenciam à classe feudal, mas ocupavam uma posição inferior a samurai. Assim, o pai tinha acesso às autoridades inferiores e a educação de seus filhos fora a melhor disponível.
Eu lhe devo tudo, pensou Hiraga.
É verdade, e fui obediente, empenhei-me em ser o melhor discípulo na escola de samurai, o melhor espadachim, o melhor em inglês. E recebi sua permissão e aprovação, assim como a do sensei, nosso mestre, para abraçar Sonno-joi e me tornar um ronin, para liderar e organizar guerreiros de Choshu, como uma vanguarda para a mudança. Só que a aprovação deles é secreta; se fosse conhecida, isso custaria a cabeça de meu pai e do sensei.
Karma. Estou cumprindo meu dever. Os gai-jin são a escória de que não precisamos. Só queremos suas armas, que vamos usar para matá-los.
A chuva aumentou. A tempestade era terrível, o que deixou Hiraga satisfeito, porque tornava menos provável que fossem interceptados. O banho, o saquê e as roupas limpas à sua espera o manteriam aquecido e forte. Não se preocupava pelo fracasso do ataque. Era o karma.
Fora-lhe incutido por seus mestres e sua herança que havia inimigos e traidores por toda parte, até que isso se tomara um estilo de vida. Seus passos eram controlados, a todo instante se certificava de que não era seguido, mudava de direção sem lógica e explorava o terreno à frente antes de avançar, sempre que possível.
Ao chegar à viela, porém, suas forças se esvaíram por completo. A estalagem dos Quarenta e Sete Ronin e a cerca ao redor haviam desaparecido.
Tudo o que restava era o vazio, um cheiro nauseante, cinzas fumegantes. Uns poucos corpos, de homens e mulheres. Alguns decapitados, outros retalhados em pedaços. Hiraga reconheceu seu camarada shishi, Gota, pelo quimono. A cabeça de mama-san fora espetada na ponta de uma lança, fincada na terra. Havia um cartaz pendurado: É contra a lei abrigar criminosos e traidores. O sinete oficial por baixo era do Bakufu, assinado por Nori Anjo, chefe do roju.
Hiraga foi dominado por uma fúria intensa, mas era uma ira gelada, que apenas se acrescentou às camadas que já existiam em seu íntimo. Os malditos gai-jin, pensou ele. A culpa é deles. Foi por causa dos gai-jin que isso aconteceu. Seremos vingados.
13
Domingo, 28 de setembro:
Malcolm struan emergiu do sono devagar. Os sentidos sondaram, testaram. Já conhecia a dor mental, perdera dois irmãos e uma irmã; a angústia causada pela embriaguez do pai, e seus crescentes acessos de raiva; de mestres impacientes; de sua necessidade obsessiva de se superar, porque um dia seria o tai-pan; e do medo corrosivo de se mostrar inadequado, por mais que se preparasse, treinasse, rezasse e trabalhasse, de dia e de noite, em cada dia e cada noite de sua vida — não fora uma infância normal, como a de outras crianças.
Mas agora, como nunca antes, precisava testar o nível de seu despertar, sondar a profundeza da dor física que teria de suportar hoje, como uma nova norma, ignorando os súbitos e terríveis espasmos que chegavam sem qualquer aviso ou lógica.