— Sir William, meu contrato termina dentro de dois meses. Não vou renová-lo.
— Não posso dispensar seus serviços pelo menos por mais seis meses — respondeu Sir William, incisivo.
— É tempo de voltar para casa. Haverá um banho de sangue aqui, muito em breve, e não quero minha cabeça espetada na ponta de um chuço.
— Aumentarei seu salário em cinqüenta libras por ano.
— Não é o dinheiro, Sir William. Estou cansado. Noventa e oito por cento de toda a conversa não passam de conversa fiada. Não tenho mais a menor paciência para peneirar o joio do trigo do barril de esterco.
— Preciso de você para essas duas reuniões.
— Elas nunca vão ocorrer. Mais dois meses, depois caio fora, o dia exato está no contrato. Sinto muito, Sir William, mas será o fim. Agora, se me dá licença, vou me embriagar.
Ele se retirou. Sir William voltou à sua sala, foi até a janela, esquadrinhou o horizonte. Era quase o pôr-do-sol agora. Nenhum sinal da esquadra. Por Deus, espero que todos estejam sãos e salvos. Devo encontrar algum meio de manter Johann. Tyrer não estará preparado pelo menos por mais um ano. E em quem eu poderia confiar? Mas que droga!
A luz do sol poente ainda iluminava a sala de poucos móveis, mas não era o suficiente para se ver direito. Por isso, ele acendeu um lampião a óleo, ajustando o pavio de forma meticulosa. Havia pilhas de despachos na mesa, sua edição de All the Year Round, há muito lida, de capa a capa, assim como todos os jornais trazidos pelo último navio de correspondência, e vários números de Illustrated London News e Punch. Sir William pegou o exemplar de Pais e Filhos, de Turguenev, em russo, enviado por um amigo na corte de São Petersburgo, e que estava entre vários livros em inglês e francês. Começou a ler, mas não conseguia se concentrar. Por isso, largou-o e iniciou a segunda carta do dia para o governador de Hong Kong, relatando os detalhes da reunião de hoje e pedindo um substituto para Johann. Lun entrou, sem fazer barulho e fechou a porta.
— O que é, Lun?
Lun aproximou-se da mesa, hesitou, mas acabou dizendo, em voz baixa:
— Senhor, ouvi que vai haver problemas, grandes problemas, muito em breve, na Casa Grande de Iedo.
Sir William fitou-o, surpreso. Casa Grande era como os criados chineses chamavam a legação em Iedo.
— Que problemas? Lun deu de ombros.
— Problemas.
— Quando?
Lun tornou a dar de ombros.
— Uísque com água, senhor?
Sir William acenou com a cabeça, pensativo. De vez em quando Lun lhe sussurrava rumores, com uma fantástica capacidade de acertar. Ele observou o chinês ir até o aparador e preparar o drinque, do jeito como gostava.
Phillip Tyrer e o capitão de kilt observavam o mesmo pôr-do-sol, de uma janela superior na legação em Iedo, os grupos usuais de samurais postados além dos muros e em todos os acessos à colina. Manchas vermelhas, laranjas e marrons no horizonte vazio misturavam-se com uma faixa azul, logo acima do mar.
— Será que teremos bom tempo amanhã?
— Não sei muita coisa sobre o tempo aqui, Sr. Tyrer. Se estivéssemos na Escócia, eu poderia lhe dar uma previsão. — O capitão, ruivo, empertigado, de trinta anos, soltou uma risada. — Chuva sem parar, com pequenos períodos de estiagem... ora, não é tão ruim assim.
— Não conheço a Escócia, mas pretendo ir até lá na minha próxima licença.
— Quando volta para casa?
— Talvez no próximo ano ou no seguinte. Este é apenas meu segundo ano. Os dois tomaram a concentrar sua atenção na praça. Quatro Highlanders, sob o comando de um sargento, subiram a ladeira, pelo meio dos samurais, e passaram pelos portões de ferro, retornando de uma patrulha de rotina ao cais, onde havia um destacamento de fuzileiros e um cúter. Os samurais mantinham-se por ali durante todo o tempo, às vezes conversando, agrupados em torno de fogueiras, que acendiam se fazia frio, numa constante movimentação. Ninguém, soldado ou funcionário da legação, fora impedido de entrar ou sair, embora todos fossem submetidos a um escrutínio silencioso.
— Com licença, mas preciso falar com o sargento agora, para me certificar de que o cúter continua em posição, e tomar as providências para a noite. Jantar às sete, como sempre?
— Isso mesmo.
Assim que ficou sozinho, Tyrer abafou um bocejo nervoso, espreguiçou-se, mexeu o braço, para atenuar a ligeira dor que ainda sentia ali. O ferimento sarara sem problemas, não precisava mais usar uma tipóia. Tenho muita sorte, refletiu ele, exceto por Wee Willie. Não entendo por que ele me mandou para cá. Afinal, eu deveria estar me preparando para ser intérprete, não militar. Droga, droga, droga. E agora perderei o recital de André, que aguardava com tanta ansiedade. Angelique vai comparecer, com toda certeza.
Rumores de seu noivado secreto haviam se espalhado pela colônia, como um vento foehn, o vento forte e seco que desce das montanhas, turbulento. As insinuações lançadas a ela ou a Struan não haviam produzido negativa ou confirnação, nem sequer uma indicação. No clube, as apostas eram dois contra um como se tratava de um fato, vinte contra um como o casamento nunca se consumaria. E pelo amor de Deus, Jamie, Struan está tão doente quanto um cachorro, ela é católica, e você conhece muito bem a mãe dele!
— Aceito a aposta. Ele melhora a cada dia que passa, e você não o conhece tão bem como eu. Dez guinéus contra duzentos. Acho que acontece.
— Charlie, que vantagem você me dá de que ela vai conseguir o que quer?
— Não tem a menor possibilidade.
— Peitos-de-Anjo não se contentará em ser amásia de ninguém.
— Mil contra um?
— Apostado... um guinéu de ouro!
Para repulsa de Tyrer e Pallidar, as cotações e apostas, mais e mais pessoas aderindo, mudavam todos os dias.
— Nunca vi gente tão sórdida!
— Tem toda razão, Pallidar. Uma escória!
Por mais intensas que fossem as especulações sobre Struan e Angelique eram ainda maiores sobre a extensão da tempestade e a esquadra, e se temia o pior, que pudesse estar em dificuldades, talvez mesmo houvesse naufragado. Ainda por cima, os mercadores japoneses se mostravam mais nervosos do que o habitual e sussurravam rumores de insurreições por todo o Japão, contra ou a favor do Bakufu, e que o místico micado, supostamente o sumo sacerdote de todos os japoneses, que a tudo controlava de Quioto, ordenara que os samurais atacassem Iocoama.
— Conversa fiada, se querem saber minha opinião — diziam os ocidentais, uns para os outros.
Mesmo assim, mais e mais armas eram compradas. Diziam até que as esposas de dois mercadores dormiam com uma arma carregada ao lado da cama. A cidade dos bêbados, segundo os rumores, transformara-se em um acampamento pronto para a guerra.