— Como está seu braço?
— Quando se tornar insuportável, cometerei seppuku — respondera Ori, a voz engrolada do saquê que tomara para amortecer a dor. — Não se preocupe.
Os três, Hiraga, Ori e mama-san, beberam juntos.
— Não há nenhum outro médico, em quem possamos confiar?
— Não, Hiraga-san — dissera a mama-san, Noriko. Era uma mulher pequena, de cinqüenta anos, a voz suave. — Até chamei um acupuntor e um herbanário coreanos, ambos amigos, mas os cataplasmas não têm nenhum valor. Poderíamos chamar o gigante gai-jin...
— Não seja estúpida! — berrara Ori. — Quantas vezes tenho de lhe dizer? O ferimento é de bala, uma das balas dos gai-jin, e eles me viram em Kanagawa!
— Por favor, desculpe — murmurara a mama-san, humilde, encostando a cabeça no tatame. — Por favor, desculpe esta pessoa estúpida.
Ela fizera outra reverência e se retirara, mas no fundo do coração censurava Ori por não ser um verdadeiro shishi, deixando de cometer seppuku enquanto Hiraga se achava presente, o mais perfeito padrinho que um homem podia desejar. Se ele assim fizesse, reduziria o perigo que a ameaçava e à sua casa. A notícia do destino sofrido pela estalagem dos Quarenta e Sete Ronin percorrera cinqüenta ri e além — uma retaliação ultrajante, matar todos os clientes, cortesãs e servidores, e exibir a cabeça da mama-san na ponta de um chuço.
Monstruoso, pensara ela, revoltada. Como uma casa pode proibir a entrada de qualquer samurai, shishi ou não? Nos tempos antigos, os samurais matavam muito mais do que hoje, sem dúvida, mas isso fora séculos antes, e quase sempre quando as vítimas mereciam mesmo morrer, não mulheres ou crianças. Naquele tempo, a lei da terra era justa, o xógum Toranaga era justo, seu filho e neto eram justos, antes que a corrupção e o desregramento se tornassem um modo de vida para os xóguns descendentes, assim como para os daimios e os samurais, que há mais de um século nos impõem seus tributos como pus! Os shishi são a nossa única esperança! Sonno-joi!
— Anjo deve morrer antes de nós — dissera ela, fervorosa, quando Hiraga voltara, são e salvo, dois dias depois do ataque.— Ficamos todos aflitos, pensando que você podia ter sido preso e queimado junto com os outros. Foi tudo feito por ordem de Anjo, Hiraga-san. Na verdade, ele voltava da estalagem quando o atacaram, perto dos portões do castelo. Foi ele quem ordenou tudo e acompanhou essoalmente as execuções, deixando homens ali, em emboscada, para o caso de algum shishi retornar.
— Quem nos traiu, Hiraga? — indagara Ori.
— Os samurais de Mori.
— Mas Akimoto diz que os viu serem cercados e mortos.
— Deve ter sido um deles. Mais alguém escapou?
— Akimoto... ele se escondeu em outra estalagem por um dia e uma noite.
— Onde ele está agora?
— Ocupado — respondera Noriko. — Devo mandar chamá-lo?
— Não. Falarei com ele amanhã.
— Anjo deve pagar com sangue pela estalagem... foi um ato contra todos os costumes!
— Ele pagará, e os roju também. Assim com o xógum Nobusada, e até Yoshi.
Em seus aposentos particulares, no alto da torre do castelo, Yoshi compunha um poema. Usava um quimono de seda azul, sentava-se à mesa baixa, com um lampião a óleo e folhas de arroz, pincéis de espessuras diferentes, água para amolecer o bloco de tinta preta, que tinha agora uma poça pequena e convidativa na depressão no centro.
O crepúsculo transformava-se em noite. Do exterior, vinha o zumbido do milhão de almas de Iedo, sempre presente. Umas poucas casas em chamas, também como sempre. Lá de baixo, dentro do castelo, o barulho abafado e confortador dos soldados, cascos nas pedras do calçamento, uma ocasional risada gutural elevando-se com a fumaça e com os cheiros de comida, passando pelas aberturas ornamentadas para os arqueiros, nas vastas paredes, ainda não fechadas contra o frio da noite.
Aquele era seu santuário pessoal. Espartano. Tatames, um takoyama, a porta de shoji à sua frente, posicionada e iluminada de tal forma que ele podia divisar os contornos de qualquer vulto no outro lado, mas ninguém podia percebê-lo lá dentro.
Além daquele cômodo, havia uma ante-sala maior, de onde saíam corredores para os quartos, vazios naquele momento, exceto pelos servidores, criadas e Koiko, sua favorita especial. A família — esposa, dois filhos e uma filha, a consorte e seu filho — se encontrava em segurança, sob forte guarda, no castelo-fortaleza hereditário, o Dente do Dragão, nas montanhas, cerca de vinte ri para o norte. Além daquela ante-sala, havia guardas, outros cômodos com mais guardas, todos tendo prestado um juramento de serviço pessoal.
Yoshi mergulhou um pincel na poça de tinta. A ponta pairou por um instante sobre o delicado papel de palha de arroz, e depois ele escreveu, com firmeza:
Espada de meus antepassados
Quando em minhas mãos
Se contorce irrequieta
O texto saiu em três linhas verticais de caracteres, curtas, fortes onde assim deveriam ser, e suaves quando a suavidade realçaria a imagem que os caracteres transmitiam — nunca havia uma possibilidade de refinar, mudar ou corrigjr sequer a menor falha, pois a textura do papel de arroz sugava a tinta no mesmo instante, fazendo com que dele se tornasse parte indelével, variando o preto para cinza, dependendo da maneira como o pincel era usado e da quantidade de água.
Com absoluta frieza, Yoshi examinou o que fizera, a disposição do poema, e toda a imagem que as tonalidades de caligrafia preta formavam no espaço branco, a fluidez e clareza de seus caracteres.
Está bom, concluiu ele, sem vaidade. Não posso fazer melhor no momento... este é quase o limite de minha capacidade, se não mesmo o limite. E o significado do poema, como deve ser interpretado? Ah, essa é a questão importante, por isso é que é bom. Mas vai alcançar o que desejo?
Essas indagações levaram-no a avaliar a lamentável situação, em Iedo e em Quioto. Poucos dias antes chegara a notícia de que ocorrera um golpe súbito e sangrento, mas vitorioso, desfechado por tropas de Choshu, expulsando as forças de Satsuma e Tosa, que nos últimos seis meses vinham mantendo o poder, numa trégua instável. Lorde Ogama, de Choshu, agora dominava os portões do palácio.