Foi terrível, o pior que já vi. Fiquei apavorada de dia e de noite. Pensei que todo o prédio ia desabar, mas é tão sólido quanto Jamie McFay. A maior parte do setor nativodesapareceu e houve muitos incêndios. A fragata Pearl sofreu avarias e também perdeu um mastro. Ontem, recebi uma mensagem do comandante Marlowe: Acabo de saber que está doente, apresento minhas mais profundas e sinceras condolências, etc.
Acho que não gosto dele, é altivo demais, embora seu uniforme o faça parecer atraente e acentue sua virilidade... como aquela calça justa deve fazer, da mesma forma que as mulheres se vestem para exibir os seios, a cintura e os tornozelos. Outra carta chegou na noite passada, de Settry Pallidar, a segunda, mais condolências, etc.
Acho que detesto os dois. Cada vez que penso neles, lembro-me daquele inferno chamado Kanagawa, e que não cumpriram o seu dever de me proteger. Phillip Tyrer ainda está na legação em Iedo, mas Jamie disse que fora informado que Phillip deve voltar amanhã ou depois. O que será ótimo, pois assim que ele chegar, tenho um plano para...”
O troar de um canhão provocou-lhe um sobressalto e atraiu sua atenção para a enseada. Era um sinal. Lá longe, num ponto distante do mar, outro canhão respondeu. Angelique olhou além da esquadra, para o horizonte, e divisou a fumaça indicadora saindo pela chaminé do navio de correspondência.
Jamie McFay, a pasta pesada de correspondência debaixo do braço, conduziu um estranho pela escada do prédio da Struan, o sol passando pelas janelas de vidro altas e elegantes. Ambos estavam de cartola e sobrecasaca de lã, embora o dia fosse quente. O estranho carregava uma pequena bolsa. Era atarracado, barbudo, feio, na casa dos cinqüenta anos, uma cabeça mais baixo do que Jamie, embora com ombros mais largos, os cabelos grisalhos compridos e desgrenhados se projetando debaixo da cartola. Seguiram pelo corredor. McFay bateu de leve na porta.
— Tai-pan?
— Entre, Jamie, a porta está destrancada.
Assim que os dois entraram, Struan olhou aturdido para o homem atarracado e perguntou no mesmo instante:
— Mamãe também veio, Dr. Hoag?
— Não, Malcolm.
O Dr. Ronald Hoag percebeu o alívio imediato e se entristeceu, embora pudesse compreender o motivo. Tess Struan fora veemente em sua condenação à “Sirigaita estrangeira” que, tinha certeza, fisgara seu filho. Escondendo sua preocupação pela perda de peso e palidez de Malcolm, ele pôs a cartola e a bolsa em cima da cômoda.
— Ela me pediu para vir vê-lo — disse ele, a voz profunda e gentil —, descobrir se posso fazer alguma coisa para ajudá-lo e escoltá-lo de volta para casa... se precisar de uma escolta.
Há quase quinze anos que ele era o médico da família Struan em Hong Kong e fizera os partos dos últimos quatro irmãos e irmãs de Malcolm.
— Eu... O Dr. Babcott vem cuidando de mim. Estou bem. Obrigado por ter vindo. É um prazer vê-lo de novo.
— Também me sinto satisfeito por estar aqui. George Babcott é um ótimo médico, não poderia ter outro melhor.
Hoag sorriu, os olhos pequenos de topázio fixados num rosto curtido e enrugado, e continuou, joviaclass="underline"
— Uma viagem horrível, fomos atingidos pela cauda do tufão e quase naufragamos. Passei a maior parte do tempo cuidando de marujos e dos poucos passageiros. Braços e pernas quebrados, na maioria dos casos. Perdemos dois homens que caíram ao mar, um chinês, passageiro de terceira classe, e um estrangeiro, nunca descobrimos quem ele era. O capitão disse que o homem se limitara a murmurar um nome qualquer ao pagar a passagem, em Hong Kong. Passava quase todo o tempo no camarote e, no dia em que resolveu sair para o tombadilho, foi apanhado por uma onda e ponto final. Malcolm, você parece melhor do que eu esperava, depois de todos os rumores que chegaram a Hong Kong.
— Acho melhor deixar vocês dois a sós — disse Jamie, pondo uma pilha de cartas na mesinha-de-cabeceira. — Aqui está sua correspondência pessoal, Malcolm. Trarei seus livros e jornais mais tarde.
— Obrigado. Alguma coisa importante?
— Duas cartas de cima. Deixei por cima.
O Dr. Hoag enfiou a mão num bolso volumoso e tirou um envelope todo amassado.
— Aqui tem mais uma carta dela, Malcolm, escrita depois das outras. É melhor lê-la primeiro, e depois vou examiná-lo, se me permitir. Jamie, não se esqueça de Babcott.
Jamie já o informara que Babcott se encontrava em Kanagawa e que mandaria o cúter buscá-lo depois que falassem com Malcolm.
— Até mais tarde, tai-pan.
— Espere mais um pouco, Jamie.
Struan abriu o envelope que Hoag lhe entregara e começou a ler a carta.
Quando Jamie subira a bordo do navio de correspondência, encontrara o Dr. Hoag à sua espera. O médico lhe dissera que já separara toda a correspondência da Struan; podiam desembarcar logo. Depois, para alívio de Jamie, respondera à sua pergunta premente:
— Não, Jamie, a Sra. Struan não veio, mas eu trouxe uma carta dela para você. Dizia apenas: Jamie, faça tudo o que o Dr. Hoag pedir, e me envie relatórios confidenciais detalhados por todos os navios de correspondência.
— Sabe o que diz a carta, doutor?
— Sei, sim, e acho que nem haveria necessidade, mas você conhece a dama.
— Como ela está?
Hoag pensara por um momento.
— Como sempre: imperturbável por fora, um vulcão por dentro. Um dia tem de explodir... ninguém pode manter tanta tristeza reprimida, tantas tragédias. Absolutamente ninguém. Nem mesmo ela.
Ele acompanhara Jamie pela rampa de desembarque, os olhos se virando para todos os lados.
— Devo dizer que me sinto satisfeito pela oportunidade de visitar o Japão... Você está muito bem, Jamie. Não resta a menor dúvida de que este posto combina com você. Já se passou quase um ano desde a sua última licença, não é? E agora conte, conte tudo, primeiro sobre o ataque mortal... e depois sobre a Srta. Richaud.
Ao alcançarem a praia, o Dr. Hoag já estava a par de tudo o que Jamie sabia.
— Mas, por favor — acrescentara ele, apreensivo —, não mencione a Malcolm o que lhe contei sobre Angelique. Ela é uma pessoa maravilhosa e também passou por momentos terríveis. Não creio que já tenham deitado juntos, o noivado secreto é apenas um rumor, mas ele está mesmo apaixonado... não que eu o culpe por isso, ou a qualquer outro homem na Ásia, diga-se de passagem. Detesto a idéia de mandar relatórios secretos para a Sra. Struan, por motivos óbvios. De qualquer forma, já tenho um escrito, uma versão atenuada, e será despachado quando o navio voltar. Minha lealdade deve ser para Malcolm em primeiro lugar, acima de tudo, pois ele é o tai-pan.