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MEMÓRIAS DA MEIA NOITE

SIDNEY SHELDON

Nâo me cantem canções da luz do dia Pois o sol é o inimigo dos amantes Ao invés, cantem das sombras e da escuridâo E das «memórias da meia-noite»

PRÓLOGO

Kowloon Maio de 1949

- Tem de parecer um acidente. Consegue arranjar isso?

Era um insulto. Sentia a raiva crescer dentro de si. Isso era pergunta para se fazer a um amador que se contratava na rua. Sentiu-se tentado a responder com sarcasmo: «Oh, sim. Acho que consigo fazer isso. Prefere um acidente dentro de casa? Posso fazer que ela parta o pescoço ao cair de um lance de escadas. 0 bailarino de Marselha. Ou ela podia embebedar-se e morrer afogada na banheira. Aherdeirade Gstaad. Podiatomaruma dose excessiva deheroína. Eliminara três assim. Ou podia adormecer na cama com um cigarro aceso. 0 detective sueco no Hotel da Margem Esquerda de Paris. Ou será que prefere qualquer coisa no exterior? Posso provocar um acidente de trânsito, uma queda de avião ou um desaparecimento no mar.» Mas não disse nada disto, pois na verdade tinha medo do homem que se sentara na sua frente. Ouvira muitas histórias arrepiantes a seu respeito, e tinha razão para acreditar nelas. De forma que tudo o que disse foi - Sim, senhor, posso provocar um acidente. Ninguém irá descobrir. Mas no momento em que dizia estas palavras a ideia passou-lhe pela cabeça: «Ele sabe que eu saberei.» Ficou à espera. Estavam no segundo andar de um edifício da cidade murada de Kowloon, que fora construída em 1840 por um grupo de chineses para se protegerem dos bárbaros britânicos. As muralhas tinham sido derrubadas na Segunda Guerra Mundial, mas havia outras muralhas que afastavam os estranhos: grupos de criminosos, toxicodependentes e violadores que deambulam pelas muitas ruas estreitas Chegaram à Estrada de Mody. 0 padre taoísta que o aguardava parecia urna figura de um antigo pergaminho, com um clássico roupão oriental desbotado e uma barba branca, às farripas e comprida. Jou sahn. Jou sahn. Gei do chin. Yat-Chihn. Jou.

0 padre fechou os olhos numa oração silenciosa e começou a sacudir o chim, a taça de madeira cheia de paus de oração numerados. Caiu um pau, e a sacudidela cessou. No silêncio, o padre taoísta consultou a sua carta e virou-se para o visitante. Ele falava num inglês defeituoso.

-Os deuses dizem que em breve te livrarás de um inimigo perigoso.

0 homem sentiu um choque agradável de surpresa. Era demasiado inteligente para não compreender que a antiga arte de chim era uma mera superstição. E era demasiado inteligente para ignorá-la. Além disso, havia outro presságio de boa sorte. Hoje, era o Dia de Agios Constantinous, dia do seu aniversário.

-Os deuses abençoaram-te com boa fung shui. Do jeh.

Hou wah.

Cinco minutos depois, estava na limusina, a caminho de Kai Tak, o aeroporto de Hong Kong, onde o seu avião particular o aguardava para levá-lo de volta a Atenas. e escadas escuras que condua m às trevas. Os turistas eram avisados amanterem-se afastados, e nem mesmo a polícia se aventuraria a entrar na Rua TungTau Tsuen, nos arredores. Ele ouvia os barulhos da rua do outro lado da janela, e a poliglota estridente e roufenha de línguas que pertenciam aos residentes da cidade murada. 0 homem analisava-o com olhos frios e negros. Falou por fim. -Pois bem. Deixarei o método ao seu dispor.

-Sim, senhor. 0 alvo está aqui em Kowloon? Londres. Chama-se Catherine. Catherine Alexander.

Uma limusina, seguida por um segundo cano com dois guarda-costas armados, levou o homem para a Casa Azulem Lascar Row, na área de Tsim Sha Tsui. A Casa Azul estava aberta apenas a clientes especiais. Era visitada por chefes de estado, estrelas de cinema e presidentes de empresas. A gerência orgulhava-se da discrição. Há seis anos, uma das raparigas que trabalhava lá falara dos seus clientes a um jornalista e foi encontrada na manhã seguinte no porto de Aberdeen com a língua cortada. Na Casa Azul havia de tudo para vender; virgens, rapazes, lésbicas que se satisfaziam sem os «talos preciosos dos homens, e animais. Era o único lugar que ele conhecia onde ainda se praticava a arte do séculoXde Ishinpo. ACasaAzul era uma cornucópia de prazeres proibidos. 0 homem pedira os gémeos desta vez. Eram um par requintadamente combinado com belos atributos, corpos incríveis e sem inibições. Lembrou-se da última vez em que lá estivera... o banco de metal sem fundo e as suas línguas e dedos macios e acariciadores, e a banheira cheia de água quente aromática que transbordava para o chão de tijoleira e as suas bocas ardentes expoliando o corpo dele. Sentiu o início de uma erecção.

-Nós estamos aqui, senhor.

Três horas mais tarde, depois de ter estado com elas, saciado e satisfeito, o homem ordenou que a limusina seguisse para a Estrada de Mody. Olhou para as luzes cintilantes da cidade que nuncadormiam. Os chineses deram-lhe o nome degau-lung-nove dragões-e ele imaginava-os a espreitarem nas montanhas sobre a cidade, prontos a descerem e destruírem os fracos e os incautos. Ele não era nada disso.

Janina, Grécia Julho de 1948

Ela acordava aos gritos todas as noites e era sempre o mesmo sonho. Ela estava no meio de um lago numa tempestade feroz e um homem e uma mulher metiam-lhe a cabeça debaixo das águas geladas, afogando-a. Acordava sempre em pânico, com falta de ar, encharcada em suor. Não fazia ideia de quem ela era e não tinha lembrança do passado. Falava inglês-mas não sabia de que país vinha ou como viera parár à Grécia, no pequeno convento das Carmelitas que a abrigou. Amedida que otempo passava, havialampejos atormentadores de memória, vestígios de imagens vagas e efémeras que chegavam e partiam depressa de mais para poder retê-los, segurar e examinar. Chegavam em momentos inesperados, apanhando-a desprevenida e enchendo-a de confusão. No começo, fizera perguntas. As freiras carmelitas eram gentis e compreensivas, mas havia uma ordem de silêncio, e a única que podia falar era a Irmã Teresa, a idosa e frágil Madre Superiora.

- Sabe quem eu sou?

-Não, minha filha - disse a Irmã Teresa. - Como é que eu vim parar a este lugar?

-No sopé destas montanhas, há uma aldeia chamada Janina. Estavas num pequeno barco no lago durante uma tempestade no ano passado. 0 barco afundou-se, mas graças a Deus duas das nossas irmãs viram-te e salvaram-te. Trouxeram-te para aqui.

-Mas... de onde vim eu antes disso? -Desculpa, minha filha. Não sei. Ela não podia ficar satisfeita com isso. -Ninguém perguntou por mim? Ninguém tentou encontrar-me?

A Irmã Teresa sacudiu a cabeça. -Ninguém.

Quis gritar de frustração. Tentou de novo.

- Os jornais... Eles devem ter recebido alguma história sobre o meu desaparecimento.

-Como sabes, não nos é permitida qualquer comunicação com o mundo exterior. Temos de aceitaravontade deDeus, minhafilha. Devemos agradecer-Lhe todas as Suas graças. Estas viva.

E foi o máximo que conseguiu obter. No começo, estivera demasiado doente para se preocupar consigo própria, mas aos poucos, à medida que os meses passavam, ela recuperava as forças e a saúde. Quando se sentiu com forças para caminhar, passavams dias a trabalhar nos jardins coloridos dos terrenos do convento, sob aluz incandescente que banhava a Grécia num fulgor celestial, com os ventos suaves que traziam o aroma pungente dos limões e das vinhas. 0 ambiente era sereno e calmo, e no entanto ela não conseguia encontrar paz. «Estou perdida», pensou, «e ninguém se importa. Porquê? Fiz alguma coisa de mau? Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu?» As imagens continuavam a surgir, espontâneas. Certa manhã, acordou de repente e viu a sua própria imagem num quarto com um homem nu que a despia. Era um sonho? Ou era algo que acontecera no passado? Quem era o homem? Era algum com quem se casara? Tinha marido? Não trazia aliança de casamento. De facto, não tinha outros haveres a não ser o hábito negro da Ordem das Carmelitas que a Irmã Teresa lhe dera e um alfinete, um pequeno pássara dourado com olhos vermelho-vivos e asas abertas. Ela era anónima, uma estranha vivendo entre estranhos. Não havia ninguém para ajudá-la, nem um psiquiatra para lhe dizer que a sua mente ficara tão traumatizada que só podia ficar só quando afastasse o passado terrível.