"Não faz mal", disse a rapariga. "Já foi maningue gentil oferecer-se para me acompanhar. Mas não queria que se incomodasse. Deixe-me no calhambeque e eu depois sigo sozinha."
"Nem pensar!", cortou Diogo com um gesto peremptório. "Faço questão de a acompanhar a casa. Isso nem tem discussão! Não a vou deixar abandonada por aí...""Mas eu estou habituada."
O furriel fingiu-se despeitado e cobriu o peito com a mão, em pose de cavaleiro.
"Por quem me toma? Acha-me capaz de a abandonar? E se aparece por aí algum turra e a rapta?
Que ia eu dizer ao meu tio?" Fez uma careta e tornou a voz mais aguda, reproduzindo um diálogo imaginário: Olhe, tio Zé, larguei-a por aí e os turras levaram-na! Agora paciência! Ficou sem enfermeira!'"
Sheila riu-se com gosto, exibindo a sua perfeita fileira de dentes.
"Que tonto! Aqui em Tete não há turras!..."
Diogo estacou de repente no passeio e ficou a observá-la fixamente, como se tivesse acabado de descobrir um novo encanto no rosto dela.
"Ora ria-se lá outra vez!..."
A rapariga parou igualmente a meio do passeio e fitou-o com uma expressão interrogadora, sem perceber o pedido.
"O quê?"
"Gostava que se risse outra vez", repetiu ele. "Sabe que tem o sorriso mais bonito que alguma vez vi numa rapariga? Quando os seus lábios sorriem, os olhos também se alegram, a cara ri e todo o corpo a acompanha. Nunca vi coisa igual!"
Sheila enrubesceu e, quase aflita, tapou a face com as mãos, como se assim conseguisse esconder o sorriso que agora a embaraçava.
"Tonto!", protestou, virando o rosto para a frente e retomando a marcha. "Já me fez corar..."
"Também fica bonita a corar", acrescentou Diogo depois de dar dois saltos para se pôr ao lado dela. "Mas é o seu sorriso que mais me encanta!..."
A rapariga aligeirou ainda mais o passo, como se tentasse fugir; ia tão depressa que parecia um figurante absurdamente irrequieto numa fita de Charles Chaplin.
"Você é maningue atrevido!", disse num queixume manifestamente pouco sincero. "Devia ter vergonha!"
"Em geral sou até um pouco acanhado", devolveu ele. "Mas ao pé de si sinto-me capaz de dizer tudo o que me vai na alma. Você tem algo de especial, sabia?"
"E você tem maningue conversa!", atalhou ela sem o encarar. "Aposto que diz isso a todas..."
O furriel pousou a mão sobre o coração.
"Juro que não!", garantiu com ênfase. "Já lhe disse que sou muito acanhado."
"Pois não parece."
A troca de palavras decorria fluida nestes tons melífluos, como se ambos se tivessem entregue a um jogo; nem sinal dos silêncios súbitos que tanto os haviam embaraçado quando se tinham conhecido apenas três horas antes. Caminhavam distraidamente, embalados nesta conversa doce.
Ora um lançava um piropo, ora o outro se fingia ofendido; brincavam num instante, logo a seguir era tudo a sério.
Absortos um no outro, como se nada mais importasse, foi com espanto que se aperceberam de que haviam desembocado na Baixa; não tinham dado pelo correr do tempo. Passaram pela Univendas e Diogo deu de caras com um edifício que reconheceu; era o Hotel Zambeze, erguido no cruzamento onde os camaradas o haviam largado nessa manhã.
A súbita pausa permitiu a Sheila orientar-se e dar indicação de que deviam cruzar a rua.
Seguiram para o outro lado até chegarem a um posto de combustíveis da Megaza com uma decoração original; sobre o telhado plano da gasolineira encontrava-se um calhambeque vermelho e branco em tamanho natural, como uma peça de museu exibida ao ar livre.
A rapariga imobilizou-se na rampa de entrada do posto e voltou-se para ele subitamente silenciosa, uma expressão ambivalente no rosto; parecia indecisa entre o desânimo e a esperança.
"Fico aqui", acabou por dizer. "Muito obrigada pela companhia. Foi um prazer conhecê-lo."
A interrupção da conversa e a despedida abrupta deixaram Diogo surpreendido. Olhou para o posto de combustíveis e depois para Sheila, como se não percebesse o que se passava.
"Você mora aqui?"
Ela riu-se nervosamente.
"Claro que não. Mas tenho ali a minha ginga."
"A sua quê?"
"A ginga", repetiu ela, recomeçando a caminhar. "Vou com ela para casa."
"Vai com uma gringa para casa?", admirou-se ele. "Não estou a perceber..."
Sheila entrou no posto e pegou numa bicicleta cor-de-rosa com estrutura baixa, como era adequado para as senhoras. Puxou-a para fora e montou-a.
"Não sabe o que é uma ginga?", perguntou a rapariga enquanto acariciava o guiador. "Iá, vê-se mesmo que está há pouco tempo em Moçambique!..."
Diogo contemplou a bicicleta com ar aprovador.
"Então vai de bicicleta para casa? Sim senhor, não a imaginava tão... tão feminina."
"Deixo-a sempre aqui quando vou para o hospital", explicou. "É maningue difícil subir a rua de ginga até lá cima. Tentei uma vez e fiquei a meio, as pernas a pesarem-me uma tonelada. Ui, foi um horror! Mais vale guardar a ginga aqui no calhambeque e ir a pé."
O furriel assentiu com a cabeça, embora nem tivesse escutado as últimas palavras. Estava demasiado ocupado a tentar inventar um pretexto e uma maneira de a ver de novo e preocupado por não lhe ocorrer nenhuma ideia; era como se tivesse chegado a um beco sem saída.
"Então despedimo-nos aqui", observou Diogo com desânimo resignado. "Tem mesmo de se ir embora?"
Ela suspirou.
"Iá. Preciso de ir para casa, a minha avó está à espera."
Como se respondesse ao suspiro dela, foi a vez de Diogo respirar fundo.
"Gostava de voltar a vê-la."
"Ai sim? E como vai fazer isso? Manda uma Berliet para me levar ao Chioco?"
Riram-se os dois, embora sem muito entusiasmo.
"Vou oferecer-me para vir cá mais vezes buscar mantimentos", disse ele. "Sabe como é, volta e meia temos de dar um salto a Tete para nos reabastecermos." Levantou a boina castanha e passou a mão pelo cabelo, juntando coragem para lançar o isco. "Acha que nos poderemos encontrar quando eu cá vier?"
"Depende", murmurou a rapariga, fazendo-se cara. "Posso estar ocupada."
"A fazer o quê?"
"Ora, a trabalhar! Então não sabe que agora sou enfermeira? Fico maningue chunguila com a bata e o cup, sabia?"
"Calculo!" Teve vontade de lhe dizer que ficaria decerto ainda mais bonita sem bata, mas não se atreveu. "Olhe, quando eu vier cá aviso-a com antecedência, está bem?"
Sheila encaixou o pé no pedal da bicicleta e preparou-se para partir.
"E como vai fazer isso? Envia-me um telegrama?"
"Mando-lhe uma carta", prometeu Diogo, tirando do bolso um papel amarrotado e uma bic azul.
"Será que me pode dar o endereço da sua casa?"
A rapariga apoiou-se sobre a perna esquerda e a bicicleta começou a rodar, afastando-se devagar.
"Isso queria você!", disse ela. "Escreva-me para o hospital."
A bicicleta ganhou velocidade e Diogo ainda deu uns passos em corrida, tentando acompanhá-
la, mas logo percebeu a futilidade do gesto e parou, ficando a acenar com o braço.
"Prometo."
Já em plena aceleração, Sheila voltou a cabeça para trás e acenou de volta. "Tá-tá!" XL
O Sol deitava-se já no horizonte, rasgando o poente com vigorosas manchas de sangue luminoso, quando a coluna invadiu no meio de grande aparato o perímetro do Chioco. A Berliet onde Diogo seguia soltou um derradeiro ronco e imobilizou-se com um bafo de exaustão. Os motores calaram-se quase em simultâneo e a calma impôs-se por fim.
Uma nuvem de poeira cor de ferrugem ficou a deslizar no ar; parecia um espectro mudo a assombrar a picada. Os soldados demoraram-se um instante mais nos assentos, entorpecidos e letárgicos, a saborear o refolgo da chegada. O rumor sussurrado da brisa e o ondular enérgico do pano dos estandartes era tudo o que os separava do silêncio mais profundo. A bandeira portuguesa adejava no topo do mastro; por vezes murchava com o abrandar do vento, para a lufada seguinte a acirrar com força redobrada, sacudindo-a em movimentos de repentina violência.