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Com um gesto deliberadamente lento, Diogo tirou a boina da cabeça e passou as costas da mão pela testa para limpar o suor sujo de pó alaranjado."Porra!", exclamou com alívio. "Estava a ver que não chegávamos!..."

Chaparro foi o primeiro a saltar para terra, no que foi seguido por outros camaradas.

"Que merda de viagem!"

Alertado para o regresso da coluna, o capitão assomou de imediato à parada e foi acolher os recém-chegados. Ainda a descansar na Berliet, Diogo viu-o caminhar fardado a rigor, as calças e a camisa impecavelmente passadas e as botas engraxadas com esmero, e não conseguiu reprimir um olhar carregado de desdém. O seu comandante era um perfeito aramista.

"Então?", quis saber o oficial. "Correu tudo bem?"

Chaparro encolheu os ombros.

"O costume, meu capitão. Fomos emboscados em dois pontos: uma vez na estrada do Songo, outra quando metemos pela picada e vínhamos para aqui."

"Oh diacho! Há feridos?"

"Não. A malta aguentou-se."

O capitão abanou a cabeça, agastado.

"Estas viagens são sempre uma chatice", observou. "E os mantimentos? Não falta nada?"

Diogo desceu devagar da Berliet, quase como se tivesse o corpo dorido, e tirou de uma pasta amarelo-torrada as requisições e toda a papelada relevante.

"Está tudo aqui, meu capitão", confirmou, folheando os documentos. "Batatas, arroz, latas de conserva, peixe seco, vinho, bazucas..."

"E combustível?", cortou o oficial enquanto procurava com os olhos o camião-cisterna. "Também veio?"

"Claro."

O comandante do aquartelamento bufou de satisfação.

"Ufa! Ainda bem! Desde que o petróleo acabou, ontem à noite, a geleira deixou de funcionar.

Estava a ver que íamos ter de tomar outra vez bazucas quentes!..." Fez sinal a uma ordenança. "Ó

Augusto, vai já meter combustível na geleira. Isso é prioritário, pá. Senão, não há bazuca para ninguém!..."

Diogo sentia-se demasiado fatigado para ajudar a descarregar os mantimentos. Sabia que formigavam por ali aramistas que haviam passado o dia inteiro sem fazer nada a não ser tratar de papelada ou descascar batatas; eles que trabalhassem. Travou a G3 e arrastou-se entre as palhotas e as tendas da tropa.

Caminhou ao longo da vedação que separava a zona militar do aldeamento civil e avistou a negra do pilão sentada numa pedra a trincar uma maçaroca assada. A rapariga tinha o seio esquerdo, arrebitado e opulento, a espreitar fora dos trapos que lhe tapavam o resto do tronco. Ela apercebeu-se da presença do soldado e acompanhou-o com um olhar expectante, como se dele esperasse um sinal. Diogo ainda considerou se haveria de o dar; o Sol deitava-se já e seria fácil lobrigar na escuridão um qualquer recanto onde também se pudesse deitar com ela. Mas algo o travou e obrigou a virar a cara para a frente e prosseguir o caminho, como se nada sentisse.

A sua própria reacção apanhou-o de surpresa. O corpo pedia-lhe mulher e ali estava uma, disponível e apetitosa. Em circunstâncias normais ter-lhe-ia feito um gesto e resolveria a coisa sem mais delongas. Era assim depois dos jogos de voleibol e também poderia ser assim depois dos jogos de guerra. Porque não o fizera? O seu comportamento assumia contornos de mistério.

Violava as normas de conduta? E depois? O facto é que outros camaradas também molhavam a sopa à socapa, como provavam as constantes comichões púbicas do Chaparro, e não era por isso que lhes sucedia o que quer que fosse.

A verdade, a surpreendente verdade, é que não tinham sido as normas de conduta militar a refreá-lo. O que verdadeiramente o travara fora outra rapariga. Sheila. Fizera toda a viagem de regresso a reconstituir a conversa que tiveram antes, durante e depois do almoço e a recordar as feições delicadas da rapariga, os seus gestos e trejeitos, o riso, a voz meiga, o olhar de chocolate ardente, os lábios sensuais, os meneios do corpo, o próprio corpo... Fora, aliás, justamente enquanto pensava nela que a coluna havia sido alvejada na viagem de regresso.

Ia Diogo com Sheila novamente a encher-lhe a cabeça quando, ao passar pela tenda que servia de cozinha, sentiu uma mão segurá-lo. Desviou o olhar para a mão e seguiu-a até à sombra. O

crepúsculo desprendia já os derradeiros lampejos do Sol, lançando o manto opaco da noite africana sobre o mato, e o soldado adivinhou, mais do que viu, o perfil pançudo do despenseiro recortado na penumbra.

"Meu furriel", disse o homem, dando um passo para a luz ténue do anoitecer. "Ouvi dizer que a coluna foi emboscada no regresso. é verdade?"

"Afirmativo", confirmou Diogo, o rosto sulcado de fadiga. "Mas foram só uns tiritos, nada de especial. Porquê?"

O despenseiro coçou a cabeça, como se avaliasse a maneira de apresentar a questão.

"É a despensa, meu furriel", acabou por dizer. "Estamos ali com um problemazito."

Diogo lançou-lhe um olhar inquisitivo, sem perceber por que razão lhe era apresentada a ele, um operacional, uma questão que cabia aos aramistas resolver. Aquela gentinha não fazia uma única patrulha e ainda o vinha sobrecarregar com problemas relacionados com a despensa?

Apeteceu-lhe mandá-los à merda, a ele e aos outros aramistas todos, a começar pelo próprio capitão, mas sentia-se de tal modo cansado que nem energia teve para se indignar.

"Diga lá o que o incomoda..."

O despenseiro fez uma careta, como se sentisse relutância em suscitar a questão mas não tivesse alternativa.

"Sabe, meu furriel, estamos a gastar demasiada comida", disse. "O arroz, as batatas, o bacalhau, a carne... na despensa está tudo abaixo dos níveis normais."

Diogo olhou-o sem perceber onde queria o homem chegar.

"Você está a insinuar que andamos a comer de mais?", perguntou. "Está a sugerir que a companhia faça dieta?"

Nova careta incomodada do despenseiro.

"Não, meu furriel. Cada homem está a consumir as quantidades normais. Mas os gastos de comida é que não são normais... se é que me entende."

Diogo sacudiu a cabeça; não entendia.

"Comemos o normal mas gastamos acima do normal?", admirou-se. "Explique lá isso melhor, homem, que eu tenho mais que fazer!"

O despenseiro inclinou-se para a frente, como se quisesse segredar-lhe ao ouvido, e baixou ainda mais a voz insinuante, já quase apenas um sussurro.

"São os mainatos, meu furriel", ciciou. "Os mainatos e as famílias. A comida que lhes estamos a dar não está orçamentada, se é que me faço entender!..."

Diogo arregalou os olhos. Os mainatos! A dificuldade do despenseiro tornou-se enfim clara. Os soldados pagavam os serviços de limpeza dos mainatos do aldeamento vizinho com rações tiradas da cozinha e que alimentavam famílias inteiras. O problema, percebeu nesse instante, é que as quantidades fornecidas ao aquartelamento eram as necessárias apenas para os soldados e não estavam previstas porções adicionais para os aldeãos.

"Estou a ver", disse o furriel. "Mas o que posso eu fazer? Não está à espera que proíba a entrega de comida aos mainatos, pois não? Além do mais, quem teria de dar essa ordem era o capitão, não eu, uma vez que..."