"A coluna não sofreu uma emboscada?", atalhou o despenseiro, os olhos incendiados de esperança.
Diogo hesitou, novamente perdido no raciocínio.
"Sim, já lhe disse! Mas não estou a ver qual a relevância disso para o seu problema!..."
O despenseiro olhou para os lados, quase conspirador, e voltou a inclinar-se para o furriel como um espião prestes a passar ao inimigo um segredo de estado.
"E se, a meio da emboscada, as balas do in tivessem furado um saco de arroz? Hã? E se também tivessem atingido um saco de batatas? E se no meio da confusão ainda se tivesse perdido o saco com as conservas?" Arqueou as sobrancelhas, buscando a cumplicidade do seu interlocutor. "Está a ver onde quero eu chegar, meu furriel?"
Diogo coçou a testa.
"Deixa-me cá ver se entendi bem", murmurou', tentando reordenar o raciocínio. "Queres justificar a comida gasta a mais nos mainatos com supostas perdas de mantimentos durante uma emboscada?"
O rosto do despenseiro abriu-se num sorriso de satisfação.
"Eu não poria a coisa melhor, meu furriel!" Voltou a olhar para todos os lados, novamente conspirador. "E há ainda o problema do soldado Raul, está a ver?"
"Não."
"E o caso daquele camarada que noutro dia deu sem querer uma coronhada num Unimog, não sei se ouviu falar. Sabe, a coisa foi um bocado à bruta e ele partiu o farol lateral traseiro da viatura.
Não há modo de justificar essa despesa, como o meu furriel bem sabe, e o Raul vai ter de pagar os estragos do seu próprio bolso, coitado." Inclinou-se ainda mais, literalmente a segredar. "Mas se alguém escrever no relatório desta emboscada que o Unimog foi atingido por uma bala do in no farol lateral traseiro..."
O despenseiro deixou a sugestão flutuar no ar, na esperança de que o seu interlocutor pegasse nela. Diogo coçou o queixo, considerando o problema. Tudo aquilo lhe parecia altamente irregular, para não dizer ilegal. O que o despenseiro lhe sugeria é que o exército assumisse as despesas pessoais dos soldados e até os seus descuidos com o equipamento. Não tinha dúvidas de que era ilegal e imoral. Mas, sendo ilegal, havia o outro lado da moral. Que moralidade tinha o exército ao interromper a vida daqueles homens, afastá-los das famílias e atirá-los para um lugar perdido no meio do mato, pô-los a viver com grande desconforto e exigir-lhes até que sacrificassem a própria vida se nem sequer era capaz de assumir as despesas de umas quantas ninharias que lhes mitigavam as dificuldades?
Concluído o raciocínio, o rosto do furriel abriu-se num sorriso e ele estendeu a mão para fechar o negócio.
"Raul, você até pode não passar de um aramista", observou, "mas não há dúvida que é um grande aramista!"
O corpo de Chaparro quase se contorcia enquanto ele, com a língua a espreitar do canto da boca, desenhava as letras na folha habitualmente usada para correspondência.
"A quem escreves tu com tanto afinco?"
A pergunta de Diogo, feita do catre no outro lado da tenda, desconcentrou-o. A esferográfica deslizou-lhe sobre o papel fino, fazendo um traço inadvertido, e o furriel praguejou de frustração.
Analisou a folha, tentando perceber se era possível corrigir a gralha, mas constatou que dificilmente conseguiria salvar aquele risco e lançou um olhar fulminante ao camarada.
"O que é?"
"Todas as noites te vejo aí deitado no catre a escrever", observou Diogo. "São para quem essas cartas?"
Chaparro manteve o olhar irritado cravado no homem responsável por ele ter feito um risco na carta.
"Que tens tu a ver com isso?"
"Ai, que sensível!", exclamou Diogo, erguendo as mãos como se se rendesse. "Pronto! Se não queres dizer, não digas!..."
Os olhos de Chaparro desceram para o risco no papel. Analisando-o com cuidado concluiu que podia fingir que se tratava de um travessão, longo é certo, mas o que lhe interessava é que havia meio de disfarçar o erro. Voltou a comprimir a língua no canto da boca e compôs o texto de uma forma que o deixou mais satisfeito. Afastou a carta e contemplou-a, como um pintor a apreciar a obra; o erro tinha sido satisfatoriamente escondido. O feito deixou-o orgulhoso; por momentos, sentiu-se mesmo um artista, talvez não um pintor, mas pelo menos o artista das emendas.
"Estou a escrever para a minha madrinha de guerra", acabou por revelar, mais bem-disposto.
"A sério? Quem é ela?"
"Chama-se Maria das Dores e vive numa aldeia perto do Redondo", disse com uma expressão sonhadora. "Escreve-me uma vez por semana e eu escrevo-lhe todos os dias. Andamos num namoro pegado."
"É gira?"
"Uma beleza!" Apalpou os bolsos da camisa à procura de alguma coisa. "Queres ver? Tenho aqui uma fotografia!..."
Chaparro saltou do catre e foi ter com o camarada com um rectangulozinho nas mãos. A fotografia a preto-e-branco, obviamente de estúdio, mostrava o rosto fresco de uma rapariga com uma fisionomia compenetrada, como se tivesse uma missão a cumprir.
"E gira, é", confirmou Diogo, devolvendo a imagem. "Onde foste desencantar esta gaja?"
"Eh pá, da maneira habitual. Mandei um pedido para a Comissão Central do Serviço Nacional de Madrinhas a candidatar-me a afilhado. Ao fim de algum tempo, o Movimento Nacional Feminino arranjou-me a Maria das Dores. Eles procuram sempre uma madrinha que seja da terra do afilhado, estás a ver?"
"E do que falam vocês nessas cartas?"
Chaparro encolheu os ombros.
"Sei lá, de tudo e de nada. Eu conto-lhe algumas das merdas que aqui se passam e, claro, dou-lhe um pouco de manteiga, não é? Digo-lhe que é muito gira, que nos devíamos encontrar quando eu voltar... essas tretas."
"E ela?"
"é muito compreensiva e diz-se orgulhosa de mim. Além disso dá-me notícias do Redondo e até já foi a minha casa falar com a minha mãe. Porreiro, não é?" A expressão de entusiasmo foi desfeita por uma pequena careta. "Mas às vezes tem uma conversa patrioteira que me enerva. Diz que estou em África a defender Deus e a família... estás a ver o género? Chego a perguntar a mim mesmo se será ela que me escreve ou o cardeal Cerejeira!" Riu-se. "Mas é simpática, isso não há dúvida."
Piscou o olho. "Sabes, se tiver jeito a escrever as minhas cartas, ainda lhe dou umas pinocadas quando chegar ao Redondo." Beijou a fotografia. "Ah, filha! Ando-te cá com uma tusa!..."
A observação suscitou um esgar céptico de Diogo.
"Já lhe contaste que tens chatos?"
Chaparro reagiu à pergunta quase com um gesto reflexo, metendo automaticamente a mão dentro das cuecas para se coçar.
"Vai-te lixar!", resmungou. Lançou um olhar a um caderno pousado no catre do furriel e, vendo-o garatujado, percebeu que também eram folhas para cartas. "Olha lá, também andas a escrever?"
Sorriu com malícia. "Não me digas que tens a tua madrinha de guerra..."
Diogo pegou no caderno de modo a esconder os seus rabiscos do olhar indiscreto do camarada.
"Pois é, arranjei agora uma."
"Ah-ha!", exclamou Chaparro como se o tivesse apanhado em flagrante. "Quem é a gaja? E lá da tua terra?"
O furriel riu-se.
"Esta é daqui."
"Daqui, de onde?", admirou-se o seu interlocutor. "Arranjaste uma madrinha de guerra em Moçambique? Como é que se faz isso, pá?"
Diogo passou os olhos pelo caderno, contemplando as linhas que já havia escrito.
"É de Tete."
Chaparro abriu a boca, estupefacto.
"De Tete?"
"Conheci-a hoje", disse. "Uma hora depois de vocês me terem largado no cruzamento."