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"Foste ao Maxim? Estava aberto?"

"Qual Maxim, qual carapuça! Ela é enfermeira, pá."

O soldado ficou um longo instante a fitar o furriel, como se visse e não acreditasse. Uma súbita irrupção de latidos desviou-lhes a atenção para o que se passava no exterior; eram os cães que ladravam para os lados do aldeamento vizinho. Os dois homens trocaram um olhar conhecedor; sabiam que era o sinal do regresso a casa dos guerrilheiros que se faziam passear por aldeãos.

A interrupção pareceu quebrar o interesse de (Chaparro em prosseguir a conversa. O soldado deu meia volta e caminhou devagar até ao seu catre, a cabeça a abanar com incredulidade, o corpo curvado quase em desânimo.

"Porra!", murmurou. "Nunca vi ninguém tão rápido com as gajas!..." XLI

O Sol era já uma pérola de luz a beijar o horizonte, como uma flor que se exibe ao mundo num derradeiro fulgor de glória, quando José Branco abriu a porta do avião e sentiu o ar sufocante de Tete esbofetear-lhe a face. Atirou um olhar na direcção de Sheila e soltou um suspiro de fadiga e alívio.

"Foi duro, hem?"

"Não me diga nada, doutor", devolveu a rapariga, apontando para os pés enlameados. "Tenho matope quase até ao joelho!"

"Nada que um bom banho não resolva!..."

"No estado em que estou, nem sei se consigo tomar banho", riu-se ela. "Estou maningue cansada e quando chegar a casa vou cair redonda na cama. A vovó até se vai assustar!"

As hélices do Piper Cherokee imobilizaram-se. Do motor vinham pequenos estalidos, como se o avião estivesse à beira de se desarticular. Eram de resto sons normais depois de um voo; por mais fatigado que o material do aparelho se encontrasse, decerto não estaria mais exausto do que os seus ocupantes.

Os recém-chegados cruzaram o capim da pista do Aero-Clu- be, acompanhados do motorista Luís e do enfermeiro Mendonça, que os tinham recolhido no grande jipe Austin. Os dois homens ajudaram a transportar as caixas dos medicamentos que haviam sobrado e a maca com um doente que o médico optara por transferir para Tete.

Ao chegar ao jipe, José apercebeu-se de um vulto no interior. Estava escuro, mas bastou um lampejo dourado no cabelo do ocupante do veículo para compreender que se tratava de Nicole.

Revirou os olhos, contrariado, mas procurou dissimular o que sentia, não fossem os enfermeiros notar o seu embaraço.

"Oi, Zé", saudou a rodesiana quando o grupo se acomodou no Austin. "Pedi ao Mendonça para me trazer também. Quis ver a chegada do avião. Você não se importa, pois não?"

"Claro que não", retorquiu o médico com secura indisfarçável. "Fizeste muito bem."

A viagem até ao hospital foi completada em silêncio, com os recém-chegados demasiado cansados para poderem sustentar uma conversa. O mutismo prolongou-se e tornou-se tão pesado que Nicole se sentiu obrigada a quebrá-lo.

"Então, Sheila?", disse. "Agora é você que faz as viagens com o doutor Branco?"

"Hmm-hmm."

"Que sucedeu com a irmã Lúcia? Pegou preguiça?"

"A irmã Lúcia tem trabalho no hospital."

A rodesiana ainda tentou preencher aquele sossego quase embaraçoso com sucessivas perguntas sobre os mais variados assuntos, mas os esforços esbateram numa barreira de respostas desconchavadas, concedidas por mera educação. Nicole percebeu e calou-se, deixando que o silêncio se reinstalasse no interior do jipe.

Todas as funções e procedimentos habituais no final de mais uma semana de périplo do Serviço Médico Aéreo foram desempenhados com eficiência silenciosa. Os voos de assistência sanitária duravam havia quatro anos, o que permitira estabelecer uma rotina que já dispensava ordens; à custa de tanta repetição todos sabiam bem o que fazer.

O doente foi internado, o material devolvido à farmácia com as requisições devidamente preenchidas e José, após uma vistoria às enfermarias, reuniu-se com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para se inteirar das novidades. No final recolheu ao gabinete, onde ficou sozinho a tratar da correspondência oficial com Lourenço Marques e a dactilografar o relatório de tudo o que acontecera durante a digressão aérea dessa semana.

Um toque na porta do gabinete arrancou um grunhido ao director do hospital.

"Hmm?"

A porta abriu-se, mas José Branco manteve-se debruçado sobre a máquina de escrever.

"Tem um minutinho para mim?"

O médico não precisou de erguer a cabeça para saber de quem se tratava.

"Que é, Nicole?"

A médica rodesiana entrou no gabinete e aproximou-se devagar, como se estivesse a experimentar o caminho.

"Você não está contente por me ver?"

José sentiu-lhe o perfume suave e parou de escrever para por fim alçar o olhar na direcção dela.

"Se queres que seja franco, não", disse com alguma secura. "Apareces aqui a toda a hora sem avisar e agora até já me vais esperar na pista do Aero-Clube. Achas que as pessoas são parvas? Se isto continuar assim, não tarda nada começam a suspeitar que se passa alguma coisa. Depois vem o falatório."

Nicole encolheu os ombros.

"Deixa elas falar. Que mal tem?"

"O mal é que eu sou um homem casado."

A rodesiana esboçou uma expressão de indiferença.

"E depois? Você não se preocupou com isso lá no Hotel Cardoso, pois não? Nem quando paquerámos pela primeira vez dentro do avião. Nem quando fizemos amor lá no Songo, ou aqui no Hotel Zambeze." Passeou a vista pelo gabinete e um brilho provocador cintilou-lhe no olhar azul. "Ou daquela vez em que fizemos desta salinha o nosso ninho."

"E então?"

A voz dela amaciou ainda mais; tornou-se um torrão de açúcar, suave e sedutora.

"E então estava pensando que poderíamos transar." Pestanejou, insinuante. "Agora. Estava querendo levar você para o hotel, mas acho que não vou aguentar nem mais um minutinho."

Indicou a porta do gabinete. "Não quer experimentar no bar? Nunca fizemos ali dentro e com o fresquinho do ar condicionado até que deve ser bem gostoso..."

A sugestão ficou a pairar, como se coubesse agora a José fazer a sua parte. O médico imobilizou o olhar fatigado no papel que dactilografara; após a pausa de uma respiração, e como se enfim articulasse o que havia muito congeminava em silêncio, abanou a cabeça numa recusa enfática.

"Não", exclamou. "Acabou."

A palavra escolhida tinha uma entoação final que alarmou Nicole.

"Acabou o quê?"

"Nós. Isto. Acabou, não quero mais."

"Você está louco?"

"Eu estava louco", rectificou José. "Mas deixei de estar. Já não quero mais isto, esta vida de duplicidade, de segredos, de esquemas às escondidas. Não quero continuar a ter vergonha de encarar a minha mulher quando chego a casa, nem andar com este sentimento de culpa que me persegue, nem estar sempre com medo de que as pessoas à minha volta se apercebam de alguma coisa." Voltou a abanar a cabeça. "Não quero mais isto. Chega!"

A médica rodesiana aproximou-se dele e pousou-lhe as mãos no cabelo.

"Que é isso, meu bem? Tenha calma, não esquente assim."

"Eu estou calmo."

Ela fitou-o nos olhos, como se medisse a determinação que via nele, e percebeu que teria de jogar forte. Molhou os lábios com a ponta da língua, ciente de que havia coisas a que nenhum homem resistiria, e inclinou a cabeça. Com um movimento rápido, caiu-lhe sobre a boca e afundou-se num beijo molhado. José tentou lutar, mas sentiu a língua invadir-lhe a boca e desistiu nesse instante, vencido por aqueles lábios ardentes, rendendo-se na convicção de que o fazia apenas por um breve momento. Deixou-se transportar naquele embalo doce, como se concedesse uma trégua aos sentidos; decidira que seria o derradeiro beijo e porque não haveria de o fruir?