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Quando o beijo terminou e os lábios se apartaram apercebeu- se de um movimento inesperado na porta e olhou naquela direcção. Com um susto, o coração a saltar num baque de horror e um doloroso aperto no estômago, reconheceu o rosto que o fitava com incredulidade.

Era Mimicas. XLII

Foi apenas duas semanas depois que Diogo Meireles conseguiu lugar na coluna de reabastecimento que partiu para Tete. Apesar de se ter voluntariado para aquela missão, fez toda a viagem em sobressalto e dividido por sentimentos ambivalentes. Sabia que a viagem era perigosa; os camaradas mostravam-se nervosos e contavam histórias de ataques à coluna. A verdade é que a emboscada que sofrera quinze dias antes naquele mesmo percurso fazia prova disso.

O outro lado da moeda era a possibilidade de abandonar, mesmo por apenas um dia, aquele buraco fedorento em que se transformara o Chioco e ir à cidade desanuviar e ver coisas diferentes.

Mas o mais importante, o que de facto o levara a candidatar-se a integrar a coluna, foi a atracção pela mais bela das jóias que Tete tinha para oferecer ao mundo.

Sheila.

Pensara nela ao longo desses quinze dias e escrevera-lhe várias cartas que o correio da semana anterior havia levado para Tete e algumas outras que não tivera oportunidade de lhe mandar por não ter havido um novo correio. Ou melhor, o correio da semana era a coluna que ele agora integrava e as cartas levava-as consigo. Pôs a mão no bolso e sentiu-as. Sabia que eram uma arma para chegar ao coração da rapariga e tinha a certeza, ou pelo menos esperava, que as primeiras já tivessem surtido o seu efeito.

O que não sabia é se Sheila iria comparecer ao encontro. Nem aliás possuía a garantia de que ela tivesse sequer consciência de que havia encontro. O facto de o correio ser semanal, existindo apenas quando a coluna ia e vinha a Tete. constituía realmente um grande contratempo na planificação da Operação Sedução. Como fazer chegar mensagens urgentes à rapariga se só lhe podia remeter cartas de sete em sete dias?

Como muitas vezes sucede nas situações de emergência, a imaginação tem o condão de contornar os obstáculos da realidade e isso mais uma vez acontecera. Dado que não tinha modo de fazer chegar a Sheila uma carta a avisar que seguiria na coluna seguinte, uma vez que essa carta só seria transportada para Tete na própria coluna que o levaria, teve de aguçar o engenho. Tal como nas revistas de Walt Disney, em que uma lâmpada se acendia na cabeça do Professor Pardal sempre que lhe ocorria a solução para um problema, a ideia aparecera-lhe na véspera num desses momentos luminosos.

Sentado no banco corrido da Berliet, Diogo observava o mato com os olhos mas a cabeça revivia aquele momento de genialidade. Estava à noite com os camaradas na palhota dos furriéis a jogar à sueca e a escutar a rádio rodesiana quando o olhar se fixara no aparelho de onde jorrava a voz de Jim Morrison a cantar Riders on the Storni com solenidade absurda. O gajo morrera no ano anterior, mas, caraças!, tinha cá um vozeirão! A solução, percebera Diogo naquele momento de inspiração em que escutava os Doors, estava no rádio. Saltou da cadeira como se tivesse sido impulsionado por uma mola e, apesar dos protestos dos camaradas, saiu a correr e só parou na tenda onde se encontrava instalado o posto de transmissão.

O posto era manejado pelo furriel Bimba, o engenhocas da companhia, que estranhou o pedido mas não ergueu obstáculos. Tal como lhe havia sido solicitado, contactou o Aero-Clube de Tete e transmitiu uma mensagem destinada ao doutor José Branco, informando-o de que o furriel Diogo Meireles iria no dia seguinte à cidade e precisava de uma consulta urgente com a enfermeira Sheila.

Diogo não explicou a Bimba, nem tão-pouco o fez na mensagem, por que motivo a consulta tinha obrigatoriamente de ser com aquela enfermeira. Bimba presumiu que ela teria qualificações especiais para o problema específico que afligia o camarada, o que de certo modo até era verdade.

Quanto ao tio Zé, Diogo não tinha modo de adivinhar o que presumiria ele, mas presumiu que o tio presumisse a verdade e nem isso o deteve.

Uma cotovelada no braço despertou Diogo, esfumando a memória do sucedido na véspera e trazendo-o à realidade da Berliet. O camarada sentado ao lado, autor da cotovelada, apontou para o horizonte e sorriu com satisfação. O furriel voltou o olhar naquela direcção e vislumbrou, como uma mancha de crayon amarelo raspada sobre uma tela azul, uma distante nuvem de poeira a pairar sobre o mato.

"Tete."

A freira que o recebeu no hospital, uma espanhola baixinha que se apresentou como irmã Lúcia, abanou a cabeça quando a inquiriu sobre Sheila ou o tio.

"A chica e o doutor Branco no están", anunciou. "Foram terça-feira dar a vuelta do Serviço Médico Aéreo."

Diogo fez um esgar de desespero, receando ter efectuado a viagem em vão. Teria o tio recebido a mensagem que enviara pelo rádio? Provavelmente já havia partido quando Bimba contactou o Aero-Clube.

"Quando voltam?"

"Hoje é sexta, portanto regressam esta tarde", disse a freira. "Se não houver novidad."

A informação animou-o; afinal nem tudo estava perdido. Despediu-se da freira e foi passear por Tete. Almoçou no Restaurante Central, passou pelo Christus Luscos, onde adquiriu alguns produtos etiquetados Só para as Forças Armadas, e arranjou boleia até ao Aero-Clube.

Logo que chegou, deslocou-se ao posto de controlo para se informar da hora prevista para o regresso do Serviço Médico Aéreo. Pediu que o alertassem quando o avião aterrasse e foi-se instalar numa espreguiçadeira junto à piscina onde decorria uma aula de natação para crianças.

Mandou vir uma cerveja, mas ocorreu-lhe que poderia ficar com um hálito menos agradável para Sheila e rectificou o pedido, corrigindo-o para uma bebida mais exótica.

"Uma Coca-Cola, por favor."

Ouvira falar muito destes refrigerantes americanos que não se vendiam na Metrópole, mas que pelos vistos eram abundantes em Moçambique. A Coca-Cola veio e, sempre com espírito de experimentação, passou a seguir para uma Pepsi Cola e depois para uma Seven Up e uma Fanta, refrigerantes com sonoridades anglo-saxónicas e um apelo estrangeirado que lhe agradavam.

Experimentou todas estas novidades com lentidão tranquila, saboreando cada trago e arrotando todas as borbulhas de gás. Deixou assim rolar a tarde, estendido na espreguiçadeira e a observar com olhar distraído a aula de natação.

Sentia-se estranhamente integrado numa humanidade mais vasta, um mundo cujas fronteiras não se limitavam ao incipiente Sumol à venda no Porto e em Lisboa e se abriam a outras novidades gaseificadas. Deu consigo a reflectir sobre a inesperada hipótese de as colónias serem afinal mais avançadas do que a própria Metrópole. Talvez a ideia parecesse absurda a um espírito menos atento, considerou, mas olhando em redor, para o ambiente ameno do Aero-Clube de Tete, o calor do ar temperado pela frescura da piscina e da garrafa gelada de Fanta, não podia ignorar que a vida ali, apesar de toldada pelas circunstâncias de guerra, se revelava bem mais encantadora do que a da fria Metrópole, onde o espaço era acanhado e as ideias curtas.

"O avião aterrou."

O anúncio, comunicado de chofre pelo empregado do bar, desfez-lhe o raciocínio com a mesma brusquidão com que o despertar dilui um sonho. Diogo ergueu-se de um salto da espreguiçadeira, atirou dez escudos para a mesa e abandonou o complexo da piscina, dirigindo-se apressadamente para a pista do Aero-Clube.