A tarde ia já avançada e sobre a pista de terra batida pairava ainda a nuvem de poeira levantada pela recente aterragem. Um Piper Cherokee branco com uma faixa azul e uma enorme cruz vermelha encontrava-se parqueado junto à casinha do controlo aéreo e várias pessoas afadigavam-se em redor do avião e de um jipe Austin verde estacionado ao lado, embrenhadas numa azáfama sussurrada.
Distinguiu no meio daquele formigar de gente, quase como se um foco de luz incidisse na figura central de uma peça de teatro, a balalaica e as calças brancas do tio.
"Por aqui?", admirou-se José Branco quando o viu.
"Não foi avisado?"
Diogo fez a pergunta com um sorriso, mas reparou que uma sombra obscurecia o olhar do tio, a névoa de uma preocupação que sem sucesso procurava esconder. Talvez incomodado com a expressão perscrutadora do sobrinho, o médico apressou-se a tirar do bolso das calças um pequeno sobrescrito dobrado em várias partes.
"Entregaram-me agora uma mensagem tua, mas confesso que ainda não a li", disse José. "Passa-se alguma coisa?"
"Não, não é nada de especial", tranquilizou-o Diogo. "Era só eu a avisar que vinha cá hoje."
Olhou em redor. "A Sheila? Ela não veio consigo?"
O tio voltou-se para trás e apontou para uma morena de bata que ajudava um aldeão doente a sair do Piper Cherokee.
"Está ali", exclamou. "Porquê?"
Diogo atirou um sorriso na direcção do tio antes de mostrar o ramo de flores que trazia escondido atrás das costas.
"é que ela vai jantar comigo e ainda não sabe."
O empregado do Carlettis revoluteava entre as mesas como um bailarino, executando hábeis passos de dança numa complicada coreografia; eram redemoinhos para evitar colisões com os fregueses que enxameavam o restaurante. Vinha banhado de transpiração, afinal havia só dois empregados para tanta gente, e rodopiou a bandeja pelo ar numa manobra quase acrobática antes de, com um derradeiro floreado, a pousar sobre a mesa.
"Uns camarõezinhos fritos para os senhores, não é verdade?", disse, assentando no centro da mesa a travessa de camarões, o pão e as duas bebidas, um copo de cerveja e uma Fanta. "Mais alguma coisa?"
O cliente fez sinal de que estava tudo bem e o empregado mergulhou na multidão e volatilizou-se.
"Caramba!", exclamou Diogo com os olhos postos na travessa. "Nunca vi camarões deste tamanho. São gigantes ou quê?"
O rosto de Sheila abriu-se numa expressão de admiração.
"Estás a brincar?", surpreendeu-se, respeitando a combinação de doravante se tratarem sempre por tu. "Nunca comeste camarões aqui em Moçambique?"
"Só cá estou há um mês e meio", esclareceu ele. "é a primeira vez que provo camarões desde que cheguei. No Chioco não há nada disto, como deves calcular." Pegou num camarão tão grande que lhe cobria toda a palma da mão. "Porquê? Não me digas que este tamanho é normal!..."
A rapariga exibiu o seu sorriso maravilhoso.
"Claro que é normal! Isto são camarões de Moçambique, Diogo!" Pegou também num e retirou-lhe a casca alaranjada. "Prova! São uma maravilha, vais ver."
O soldado seguiu-lhe o exemplo e trincou o camarão que retirara da travessa.
"Hmm... é realmente bom. Parece um doce!"
Sheila fez um gesto com a cabeça, a indicar o restaurante.
"Os petiscos aqui do Carlettis têm muita fama em Tete", revelou. Pousou os olhos na cerveja. "E
dizem os entendidos que a cerveja de cá é a melhor da cidade..."
Diogo já a havia bebericado, mas deu outro gole para a saborear de novo.
"E boa é", confirmou. Estendeu-lhe o copo. "Queres privar?"
"Ah, não!", disse ela. "Não bebo cerveja. Aliás, não bebo álcool nenhum."
O rapaz sorriu com malícia.
"Porquê? Tens medo de apanhar uma piela?"
"Não é isso. Não toco em álcool por motivos religiosos."
A explicação arrancou um olhar surpreendido do militar.
"Quais motivos religiosos? Que eu saiba Jesus bebia vinho..."
Sheila colou os dedos delgados à garrafa de Fanta, sentindo a frescura da garrafa de laranjada gaseificada.
"Sou maometana."
A rapariga fez a declaração como se ela explicasse tudo, mas para sua surpresa o seu interlocutor não pareceu esclarecido.
"E então?"
"Diogo... os maometanos não bebem álcool!..."
O rapaz arregalou os olhos.
"Ai não?! Porquê?"
A pergunta de Diogo desencadeou em Sheila uma gargalhada; era assombrosa a ignorância dos metropolitanos em relação à religião que ela professava.
"Porque o Profeta assim mandou", esclareceu. "Eu até nem sou muito zelosa no cumprimento dos nossos preceitos, mas pelo menos isso respeito."
O rapaz perscrutou-lhe o rosto devagar, como se a descobrisse a uma nova luz.
"Pois é, ouvi dizer que há maningue maometanos aqui em Moçambique..."
"Então não há?", riu-se ela, divertida por lhe captar um primeiro maningue, sinal de que Diogo se aculturava depressa.
"Uns vinte por cento da população de Moçambique são maometanos, Diogo. E olha: somos grandes patriotas portugueses, sabias? A guerrilha não consegue entrar em Nampula porque a população dominante da província são os Macuas, uma etnia islamizada. Os Macuas são os mais fiéis aliados dos brancos e não se deixam influenciar pelos turras."
"Ah, pois! Os Macuas!", exclamou Diogo, familiarizado com a etnia devido à sua importância no quadro militar. "O in invadiu Cabo Delgado e o Niassa, mas não consegue descer para o resto da província por causa dos Macuas. São maometanos?"
"Se fores a Nampula vês mesquitas em toda a parte..."
"Ai sim? E por que motivo vocês afiam os dentes? E também um costume maometano?"
"Que confusão!", exclamou ela, revirando os olhos de exasperação. "Em primeiro lugar, o que é isso de vocês? Quem é vocês?"
"Bem... vocês, os macuas maometanos."
"Eu não sou macua! Nasci aqui em Tete e tenho antepassados indianos, brancos e acheuas. A maior parte dos macuas são maometanos, mas nem todos os maometanos de Moçambique são macuas, entendes? Depois, quem afia os dentes não são macuas nem isso é prática maometana."
Arreganhou os beiços e exibiu uma fileira perfeita de dentes brancos. "Vês? Não estão afiados, pois não? Para tua informação, quem afia os dentes são os Macondes, que são animistas e cristãos e aliaram-se aos turras em Cabo Delgado."
"Ah, tu não és macua!..."
Sheila riu-se com a ideia.
"Claro que não, já te disse. Mas sou maometana."
O soldado mostrou a Sheila o seu melhor sorriso.
"Então está tudo explicado!", exclamou. "Se és maometana, tens de ser boa rapariga!" Engoliu mais um camarão e fez uma careta, como se tivesse acabado de lhe ocorrer algo. "Olha lá, não são os maometanos que podem casar com várias mulheres ao mesmo tempo?"
A pergunta provocou um ligeiro franzir do sobrolho da rapariga, desconfiada do que aí vinha.
"Sim..."
"Quer dizer que, se eu casar contigo, poderei também casar com outras mulheres? Não te importavas?"
Sheila ergueu a mão para o travar.
"Calma!", exclamou. "Isso não é assim! Em primeiro lugar, já te expliquei que, sendo maometana, não sou zelosa no cumprimento dos nossos preceitos. Portanto, comigo não há haréns para ninguém! Em segundo lugar, aqui em Moçambique vigora a lei portuguesa. Que eu saiba, o casamento com duas ou mais mulheres ao mesmo tempo chama-se poligamia e é ilegal. Por isso não te ponhas com ideias, ouviste?"