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Diogo recostou-se na cadeira e trincou um dos derradeiros camarões que restavam na travessa.

Na face bailava-lhe um sorriso tão malicioso que deixou a rapariga inquieta. O que raio havia ela dito que lhe pudesse ter dado tanta satisfação? Aguardou uns momentos, esperando que ele se explicasse, mas como nada dizia e mantinha aquele esgar estupidamente irónico, a rapariga não se conteve.

"Olha lá, porque estás com essa cara?"

O furriel fez um ar de admiração inocente, o sorriso transformado já em riso.

"Eu? Qual cara? Não estou com cara nenhuma!..."

Sheila apontou-lhe para a face.

"Essa aí!... Esse risinho maningue parvo. Em que estás tu a pensar?"

O riso de Diogo tornou-se de novo sorriso.

"No que tu disseste."

A rapariga passou mentalmente em revista as palavras que havia proferido momentos antes, tentando perceber aquela observação; por mais que se esforçasse, contudo, nada de anormal descortinou no que tinha dito. Então porque sorria ele?

"Anda lá", implorou. "O que disse eu que te pudesse pôr com essa cara de... de...?"

"Não foi bem o que disseste", murmurou ele com uma expressão enigmática. "Mas o que não disseste."

A observação deixou Sheila intrigada. Esperou que Diogo concretizasse a ideia, mas o militar voltou a fechar-se no seu sorriso.

"Está bem", impacientou-se Sheila. "O que foi que eu não disse?"

O rapaz pressentiu-lhe o desassossego e percebeu que teria de abrir o jogo. Para ganhar tempo, e porque a tarefa requeria uma boa dose de atrevimento, pegou no copo e engoliu de uma assentada o que lhe restava da cerveja. Depois pousou o copo vazio, lambeu a espuma que se lhe colara aos lábios e fitou-a com uma expressão séria e inescrutável.

"Quando te falei no harém disseste que isso não aceitavas", lembrou ele. "O que não disseste é que não te casavas comigo." XLIII Como Sheila havia saído do Aero-Clube na companhia de Diogo, José Branco fez o caminho para o hospital sozinho no banco traseiro do jipe. Luís seguia ao volante e tagarelava sem cessar com o enfermeiro Mendonça, ambos em voz baixa, deixando o médico lá atrás entregue aos seus pensamentos.

A cidade de Tete, poeirenta e adormecida na obscuridade azul-petróleo do início da noite, desfilava em silêncio diante dos olhos do médico-aviador. José observava as casas, as árvores, os postes de iluminação, as lojas, os transeuntes, as bicicletas e os automóveis, mas apenas registava o problema que havia uma semana lhe ocupava a mente, como se um espírito tivesse tomado conta dele e não houvesse forma de o exorcizar. O problema era Mímicas.

Desde que a mulher o apanhara no gabinete a beijar Nicole a vida mudara. E para pior. Nesse fim-de-semana Mímicas não lhe dirigira uma palavra que fosse. Permanecera num estado de mutismo absoluto. José tentou falar-lhe, procurou explicar-lhe a situação, esforçou-se por lhe mostrar que era a ela que amava, que apesar do que vira ele havia terminado o relacionamento com a rodesiana, mas a mulher ignorou-o por completo. Afastou-se dele e manteve-se longos períodos encerrada no quarto.

Era nesse pé que se encontrava a situação quando José teve de partir na madrugada de terça-feira para mais um périplo aéreo pelo distrito. Andara de terriola em terriola a tratar de doentes, mas o que lhe ocupava em permanência a mente era Mimicas. E certo que os dias mais difíceis tinham sido os primeiros, quando o cisma que se dera no casal estava mais fresco e parecia absolutamente irreversível, ensombrando o futuro da relação.

Com o passar dos dias, todavia, foi encarando as coisas de outra perspectiva e a visão do problema tornou-se menos pessimista. Pensou que provavelmente tinha sido melhor ter-se afastado durante aquela semana. A pausa conceder-lhes-ia espaço, daria perspectiva às coisas e permitiria suavizar a dor. Não se dizia que o tempo tudo cura?

"Estamos a chegar, doutor", avisou Luís. "Vamos primeiro ao hospital ou prefere que o deixe já em casa?"

Perdido nas suas deambulações, o médico foi apanhado de surpresa com a rapidez com que haviam atingido o topo da colina e hesitou, indeciso quanto ao que fazer.

Em circunstâncias normais iria primeiro ao hospital falar com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para tomar conhecimento de tudo o que acontecera na sua ausência e depois iria visitar as enfermarias e despachar a burocracia acumulada. Mas aquelas circunstâncias não eram normais, como de resto, e pelos vistos, até o próprio motorista estava ciente.

"Leva-me a casa."

O médico-aviador havia passado quatro dias ausente e sabia que não aguentaria nem mais um minuto. Tinha uma necessidade premente, absoluta, inadiável, de se reconciliar com a mulher. O

momento era enfim chegado.

As folhas dos arbustos na berma da colina ondulavam ao sabor do bafo quente da brisa e a poeira rodopiava na estrada como um peão incorpóreo. Lá em baixo cintilavam as luzes ténues da cidade, mas a casa estava mergulhada na sombra. Parecia um vulto adormecido na noite.

Logo que Luís e Mendonça o deixaram, José aproximou-se da entrada e apercebeu-se de que uma claridade frágil despontava como um fio de luz debaixo da porta. Meteu a chave na fechadura e entrou em casa.

"Mímicas", chamou, como habitualmente quando regressava do Serviço Médico Aéreo.

"Cheguei!"

Havia um candeeiro aceso no canto da sala, mas de resto não registou sinais de vida. O recém-chegado percorreu a casa num estado de ansiedade crescente; espreitou os quartos, o escritório e a cozinha, mas não viu vivalma. Sentou-se à mesa da sala de jantar e tentou perceber onde estaria a mulher. Agarrou-se ao telefone e ligou para as amigas dela, mas Mímicas não se encontrava com nenhuma. Em desespero de causa telefonou para diversos estabelecimentos públicos onde ela poderia estar, incluindo o Café Zambe, o Bar Copacabana e até o centro comercial, sempre sem a conseguir localizar.

Foi a irmã Lúcia quem lhe deu a melhor sugestão.

"Não vi a sua senora toda a semana, doutor", disse ela do outro lado da linha. " Pero bablou com o Ernesto?"

José bateu com a palma da mão na testa; como pudera esquecer-se de algo tão elementar?

"Tem razão. Ele deve saber."

O anexo onde Ernesto vivia com a família era uma fila de três compartimentos alinhados no quintal, entre a garagem e a casa. Quando saiu para a varanda traseira, José deparou-se de imediato com o bailar nervoso das luzes dos candeeiros de petróleo e escutou o murmúrio tranquilo das conversas em nhungué. Havia mantas estendidas numa rampa ao lado do anexo; era ali, ao ar livre, que a família do empregado dormia.

"Ernesto?!"

Fez-se um súbito silêncio no quintal.

"Sim, doutor?"

"Onde está a senhora?"

O empregado não respondeu de pronto. O médico vislumbrou um movimento na sombra e percebeu que era o vulto de Ernesto a aproximar-se da varanda interior, as feições e os contornos do corpo pouco nítidos à contraluz dos candeeiros.

"Ela saiu."

"Sabes para onde foi?"

O empregado abanou a cabeça.

"Saiu na quarta-feira."

A informação atingiu José ao retardador. Quarta-feira? Quarta-feira tinha sido dois dias antes.

"E não voltou?"

"Não senhor", murmurou Ernesto lugubremente. "Saiu com mala."

A informação deixou José embasbacado. Esta novidade tornava tudo bem mais grave.

"Não... não disse para onde ia?"

"Não senhor."

O médico teve de se apoiar ao ferro da varanda, a mente mergulhada numa corrida quase febril para identificar possíveis destinos. Teria ido para Lourenço Marques? Regressara à Metrópole?