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"A Mímicas não está?"

A pergunta foi feita por José no tom mais casual possível, quase como se o assunto tivesse acabado de lhe ocorrer. De costas para o visitante, Domingos misturou soda com o whisky e deitou gelo nos copos, enquanto se meneava ao ritmo da orquestra que jorrava pelo altifalante do gira-discos. Depois aproximou-se, estendeu um copo ao amigo e caiu pesadamente no seu lugar.

"A Albertina meteu uns dias de férias e foram as duas à praia", disse com ar desentendido.

"Devem aparecer daqui a pouco."

Pela expressão fugidia do amigo, José percebeu que ele conhecia a situação do casal mas optara por fingir ignorância, o que se afigurava o comportamento mais sensato. Não voltaram por isso a tocar no assunto, deixando a conversa derivar para a vida na Beira e em Tete.

"Olha que Portugal está a perder mão na situação", avisou Domingos, entretendo-se a balouçar o gelo que tinha dentro do copo. "Aqui o nosso amigo Jardim prepara-se para decretar a independência de Moçambique."

"Qual Jardim?", admirou-se o médico, que nunca ouvira falar em nenhum dirigente da guerrilha com esse nome. "Quem manda no vosso lado não é agora o Machel?"

O advogado negro soltou uma gargalhada.

"Estou a falar do Jorge Jardim, pá! O manda-chuva aqui da Beira."

José arregalou os olhos, identificando o personagem. Jorge Jardim era o maior empresário de Moçambique, uma espécie de governador não oficial da província.

"Ah, o Jardim!" Associou a figura à informação que Domingos lhe dera e esboçou uma expressão de estranheza. "Ele quer decretar a independência? Que disparate é esse?"

"é como te digo. Tenho informações seguríssimas de que o gajo fez em Lusaca um acordo com o Kaunda que prevê um governo multipartidário para Moçambique, integrando a própria Frelimo, com independência e continuação da ligação à Metrópole. O plano até era porreiro, mas o Marcello e o Machel recusaram." Inclinou-se no seu lugar, falando já quase num sussurro. "Parece que o Jardim pretende agora seguir o exemplo dos bifes da Rodésia e decretar unilateralmente a independência, instituindo um regime branco aqui em Moçambique. O gajo é amigo do Banda e põe o Malawi do lado dele. é possível que conte ainda com a ajuda da Rodésia e da África do Sul, que andam há anos a tentar meter aqui tropas porque acham que os Portugueses não estão a fazer a guerra como deve ser e têm medo de, caindo Portugal, serem eles os próximos alvos a abater."

Sorriu. "No que têm razão, diga-se de passagem..."

"A Metrópole não vai nessa conversa!..."

Domingos girou a palma da mão de um lado para o outro, indicando que não tinha a certeza de nada.

"Vamos ver", limitou-se a dizer. "De qualquer modo, o controlo da situação começa a escapar a Portugal. O Kaúlza acha que a guerra se resolve militarmente e está a dar cabo de tudo, mas, tanto quanto sei, o Marcello e o governador-geral estão descontentes com ele. O Marcello acusa-o de ter uma concepção cruel da guerra e o governador diz que o gajo quer ganhar a matar toda a gente e que as guerras subversivas não se vencem assim. Parece que a PIDE tem a mesma opinião."

O médico pareceu intrigado.

"Mas como raio sabes isso tudo?"

O amigo recostou-se no seu assento.

"Posso estar com residência fixa", disse com um sorriso, "mas não ando a dormir." Apontou-lhe o indicador. "E digo-te mais: a coisa vai aquecer em Tete."

"Mais ainda?"

O fragor distante das ondas rompeu pela janela. Domingos lançou um olhar para lá da marginal e contemplou a linha que demarcava as duas manchas azuis, como um traço riscado a crayon cerúleo numa tela colossal; era o horizonte derramado entre o azul-escuro do mar e o anil claro e profundo do céu.

"Nunca ouviste falar de Mucumbura?"

"É uma terriola perto da Rodésia", identificou José. "Parece que houve para lá uns problemas no ano passado."

Os olhos de Domingos desviaram-se do fio longínquo para o amigo.

"A Frelimo matou um régulo que ajudava os Portugueses e plantou uma mina que matou três soldados rodesianos", disse num tom distanciado. "Dias depois apareceram lá as tropas especiais e mataram mais de vinte machambeiros por terem dado comida aos guerrilheiros. A mesma coisa aconteceu meses depois em várias aldeias ao longo do rio Dack e ainda na zona do Buxo." Abanou a cabeça. "Não sei onde isto irá parar, mas se é assim que o Kaúlza quer ganhar a guerra..."

O advogado deixou de propósito a frase em suspenso e foi justamente no silêncio que se seguiu que escutaram o som de uma chave a rodar na fechadura e se voltaram para a entrada.

A porta abriu-se e Albertina entrou em casa na companhia da amiga.

Logo que viu o marido na sala a fitá-la com uma expressão

expectante, porém, Mimicas deu meia volta e abalou. XLVI

A Berliet imobilizou-se à entrada do tabuleiro da ponte sobre o rio Mazoi e o furriel Bimba foi o primeiro a saltar. Estudou a estrutura metálica à distância, avaliando os seus pontos nevrálgicos, e voltou-se para trás, fazendo um gesto para a viatura.

"Diogo", chamou. "Vens comigo?"

O camarada mantinha-se recostado no banco corrido da Berliet, os olhos sonhadores a relembrarem a experiência que vivera duas noites antes, e pareceu despertar no momento em que ouviu a voz interpelá-lo pelo nome.

"Hã?", perguntou, atarantado. "O quê? O quê?"

Deu com Bimba de olhos cravados nele, as mãos à ilharga numa pose de reprovação.

"Olha lá, estás a dormir ou quê?" Fez sinal para a ponte. "Anda daí, vamos inspeccionar os pilares!..."

Dessa vez a instrução foi compreendida. Como se fosse catapultado por uma mola, Diogo saltou do veículo, certificou-se de que a G3 se encontrava destravada e internou-se no capim, acompanhando o camarada na descida pela encosta.O rio fluía à distância, fresco e convidativo, e o gorgolejar límpido das águas ecoava pelo vale como uma torrente melódica. Diogo caminhava com os olhos a saltitarem entre o chão que pisava e o rio que o tentava, até firmar o pé num pequeno promontório e poder enfim contemplar o braço prateado de água. Passeou os olhos pelo caudal, com esperança de poder descer lá a baixo para dar uns mergulhos depois de terminar a missão; considerando o calor infernal que fazia, parecia-lhe até mais sensato fazê-lo nesse momento.

"Então? Vens?"

A voz do furriel Bimba voltou a retirá-lo da fantasia. Sacudiu a cabeça, preocupado já com a facilidade com que se distraía à mais pequena oportunidade, e aligeirou o passo no encalço do camarada. Bimba guiou-o entre os arbustos e o capim alto até se posicionarem por baixo do tabuleiro da ponte. Logo que atingiram um ponto favorável de observação, começaram a inspeccionar a estrutura.

O olhar de Diogo percorreu a parte inferior do tabuleiro e depois passou para os pilares. O

primeiro apresentava-se limpo, mas a sua atenção deteve-se num volume estranho que parecia amarrado ao segundo pilar.

"Está ali uma coisa."

Bimba seguiu-lhe a direcção do dedo.

"Onde?", quis saber. Perscrutou o pilar até localizar o objecto suspeito. "Ah, aquilo!..." Estreitou os olhos, como se assim conseguisse ver melhor. "Parece-me um ninho..."

Diogo considerou a possibilidade e estudou o volume com grande atenção. Ao cabo de alguns instantes, abanou a cabeça.