"Não é ninho nenhum", sentenciou com absoluta segurança. "São explosivos."
Os dois militares pareciam lagartixas coladas ao pilar. Diogo verificou a segurança da corda que o sustentava e fez força com a perna, colocando-se por fim ao nível do volume suspeito. Era uma caixa metálica e parecia fundida no pilar; impossível arrancá-la com os meios de que dispunha ali.
Estudou o receptáculo e apercebeu-se de que estava vedado. Uma tampa selava a caixa através de quatro pequenos parafusos atarraxados um em cada canto.
Espreitou para baixo e viu a cabeça de Bimba a balouçar a ritmo do seu arfar. O camarada esforçava-se por alcançar o ponto onde se encontravam os explosivos; era um soldado experiente, mas faltava-lhe a preparação física de Diogo para ser capaz de escalar o pilar com a mesma destreza.
"Ó Bimba", chamou Diogo. "Esta merda está selada por uns parafusos. O que faço?
Desaparafuso a tampa?"
"Não toques nisso, porra!", exclamou o camarada, fazendo uma pausa para recobrar energia.
"Aguenta um instante!..."
Bimba levou ainda um minuto a ascender à posição onde se situava a caixa suspeita. Chegou ofegante e teve de aguardar ainda alguns momentos de modo a recuperar o fôlego e as forças.
Limpou a transpiração que lhe escorria abundante pela fronte e, já mais recomposto, secou na farda as mãos suadas e começou por fim a examinar a caixa.
"Ufa!", bufou. "O que temos aqui?" Passou a mão pela tampa e inspeccionou os parafusos.
"Hmm... pois é, precisamos mesmo de desaparafusar esta gaita." Sentindo que necessitava de mais tempo para se restabelecer, desviou os olhos para o camarada. "Fazes-me isso?"
Diogo extraiu do bolso das calças um instrumento aguçado e colou-lhe a extremidade a um parafuso, desenroscando-o de imediato. Depois passou para os seguintes até conseguir soltar a tampa e expor o interior da caixa. Fez tudo com movimentos automáticos, os olhos a acompanharem os seus próprios gestos mas a atenção a deambular pelo rosto de Sheila, o jantar no Carlettis, o passeio de mãos dadas ao longo da avenida, o primeiro beijo por baixo da mangueira, nunca uma mangueira havia produzido manga mais doce do que os lábios de Sheila, o sorvete italiano saboreado no...
"Hmm... mau, mau!", murmurou Bimba como se falasse apenas consigo mesmo. "Esta é nova!..."
A observação despertou Diogo. Surpreendera-se mais uma vez a sonhar acordado, e isso, percebia, sucedera justamente num momento em que não podia de modo algum acontecer. Estava pendurado num pilar de uma ponte a desactivar um explosivo e precisava de se concentrar totalmente na tarefa.
Olhou para Bimba como se o enxergasse pela primeira vez e viu-o estudar o dispositivo no interior da caixa. O que lhe chamou a atenção, porém, foram as dúvidas que' lhe leu no olhar. Fez um esforço mental e reconstituiu de memória as palavras que ele havia pronunciado momentos antes, transformando os sons numa frase com sentido.
"O que queres dizer com isso?", alarmou-se Diogo logo que percebeu o que o outro dissera instantes antes. "Nunca viste armadilhas destas?"
Absorvido no problema, o camarada não respondeu; provavelmente nem sequer tinha escutado a pergunta. Bimba deitou a mão ao interior de um saco que trouxera a tiracolo e tirou um caderno que se pôs de imediato a folhear. Diogo baixou a cabeça de modo a ficar em posição de espreitar o título. O cabeçalho do caderno dizia Manual do Exército e assinalava, como subtítulo, Manuseamento de Explosivos.
O furriel estremeceu e endireitou-se, abalado. Bimba era o perito em minas e armadilhas do Chioco e supostamente dominava o tema de trás para a frente. Observá-lo a consultar um manual para aprender a desactivar explosivos não era, por isso, das coisas mais reconfortantes que se poderia vê-lo fazer, sobretudo quando se estava ao pé dele e junto dos explosivos nos quais ele iria mexer.
"Olha lá", retomou Diogo com crescente inquietação. "Tu sabes o que estás a fazer?"
Bimba lançou-lhe um olhar estranho e voltou de novo a atenção para o manual. Depois começou a estudar as ligações estabelecidas na caixa, comparando-as com o que via no texto.
"Ora bem, se eu tirar este fio vermelho, a coisa em princípio fica resolvida...", murmurou num diálogo consigo mesmo. Hesitou, consultando o manual e depois outra vez a caixa. "Não, não é o vermelho. E o azul." Mais uma hesitação. "Hmm... espera aí! Tiro o fio azul? E se... hmm!... Não será melhor o vermelho?"
Novas gotas de suor brotaram do topo da testa de Diogo. Ao contrário dos outros, estes pingos que lhe escorriam já pela face não eram a habitual transpiração produzida pelo calor, mas puro efeito dos nervos a serem testados. Sabia-o porque aquele suor era frio; além disso, pela mesma altura sentiu uma pontada dilacerar-lhe o estômago e percebeu que o corpo lhe exigia que saísse dali enquanto havia tempo.
"Bimba", disse, quase numa súplica. "Tens a certeza que sabes o que estás a fazer? Olha que se não tens é melhor a malta descer e mandar vir um engenheiro que perceba disto, pá!... Não vamos correr riscos estúpidos, pois não?"
Inquiriu o rosto do camarada, à espera de uma resposta, mas achou a expressão de Bimba estranha; tinha as pálpebras molhadas e o branco dos olhos parecia injectado de sangue.
"E se for o amarelo?", interrogou-se Bimba nesse instante. Espreitou o manual. "Se eu tirar o fio amarelo, será que esta merda explode? Hmm... talvez seja melhor ir mesmo para o vermelho..."
Os dedos do perito em explosivos dançavam entre os três fios, na agonia da indecisão. Num instante dava a impressão que ia puxar um, mas uma consulta ao manual convencia-o a arrancar outro até uma nova espreitadela àquelas páginas o fazer regressar à primeira hipótese ou avançar para a terceira.
"Bimba!? Estás a ouvir?", insistiu Diogo, sacudindo-lhe o ombro esquerdo. "é melhor não mexeres nessa merda, pá!... Vamos chamar alguém, está bem?"
Em vez de responder, o perito em minas e armadilhas pôs-se a trautear uma cançoneta que Diogo reconheceu como a canção que Tonicha levara no ano anterior ao Festival Eurovisão da Canção.
"Menina de olhar sereno raiando pela manhã", começou Bimba a cantarolar, "de seio duro e pequeno num coletinho de lã..."
Diogo cravou o olhar no rosto alterado do camarada e depois nos dedos que brincavam com os três fios ligados aos explosivos e lembrou-se de ouvir Chaparro dizer que o Bimba estava em fim de comissão e já andava transtornado e sentiu enfim a verdade impor-se diante dele, terrível e definitiva.
"Tá piruças!"
Com o pânico a apossar-se do corpo, Diogo desatou a descer apressadamente o pilar, sem saber se ia a tempo de se salvar, se Bimba esperaria pelo final da canção para puxar os fios, se a canção era longa, se...
"Já está!"
A voz de Bimba, lá em cima, paralisou-o de terror. Encolheu- -se abraçado ao pilar, à espera do pior. Mas nada aconteceu. A medo, sempre a aguardar que o mundo desabasse a todo o momento, ergueu devagar os olhos e espreitou para cima.
"Já está, como? O que fizeste?"
"Era o fio vermelho", devolveu Bimba com despreocupação, as mãos ocupadas a desmontar o engenho sem qualquer cerimónia. "Os cabrões às vezes fintam-nos e mudam as cores. para nos baralhar, mas a mim não me enganam eles!" Soltou uma risada histérica. "Filhos da puta, pensavam que trapaceavam o Bimba?! Ora tomem lá, que já ficaram sem a bomba!..."
Desceram os pilares com os explosivos separados em peças diferentes. Depois de guardarem o material na Berliet foram inspeccionar o resto da ponte e, não encontrando mais nada que considerassem suspeito, juntaram-se ao resto da unidade de combate. Os homens da companhia estavam posicionados na estrada e no mato em redor da ponte, a vigiar o local de modo a garantir a segurança em torno da estrutura.