A mulher lançou-lhe um olhar ressentido.
"Vai-te embora!"
A ordem foi ignorada por José, que continuou a caminhar até mergulhar na sombra do navio encalhado e estacar junto a Mimicas. Estava-se bem ali, com os destroços a protegê-los do calor húmido e inclemente. Era difícil perceber por que razão aquele barco ainda não havia sido removido, mas a verdade é que se tornara já parte integrante da paisagem daquela praia, como um velho coqueiro a que todos se tivessem habituado.
"Anda para casa", disse ele num tom suave. "Não sei o que te diga mais para expressar o meu arrependimento. Já te pedi desculpa mil vezes e peço-te outras mil se tiver de ser."
"Nem que peças um milhão de vezes", retorquiu ela, sem tirar os olhos do mar. "Vai-te embora!
Nem te quero ver à frente!"
José suspirou e sentou-se na areia ao lado dela.
"Eu sei que não serve de desculpa, mas quero-te dizer que nada foi planeado nem desejado por mim. Ela simplesmente...
atirou-se a mim. Eu resisti, mas, sabes como é, um homem é um homem e... e..."
"Cala-te!", cortou Mimicas num grito, o corpo agitado numa convulsão. "Não quero ouvir nada!"
O marido reavaliou o que havia dito e concluiu que deveria evitar referências a Nicole. O
melhor era concentrar-se nos seus sentimentos pela sua mulher.
"O que te quero dizer é que nunca gostei de outra pessoa que não fosse de ti", disse. "Os homens às vezes são estúpidos e fazem coisas estúpidas. No momento em que as estão a fazer sabem que são estúpidas, mas é como se algo tomasse conta da nossa vontade... não sei como explicar."
Respirou fundo. "O que quero dizer é que fiz um grande disparate, mas espero que me perdoes.
Amo-te a ti e só a ti e o que se passou não se repetirá nem mais uma vez."
Mimicas levantou-se bruscamente.
"Não quero voltar a pôr-te os olhos em cima!", rosnou. Deu meia volta e começou a afastar-se com passos rápidos, mas o marido ainda lhe escutou um derradeiro desabafo. "Metes-me nojo." XLVIII O herói do bigode e a rapariga de sari púrpura e dourado trocaram um longo olhar langoroso e, embalados por uma melodia sentimental pungente, aproximaram os rostos com infinito vagar até as pontas dos narizes se tocarem com pudor; a imagem fez então um lento fade a negro, as luzes acenderam-se como se o Sol tivesse irrompido no salão e os aplausos eclodiram em cascata na plateia, misturando-se com uma chuva de assobios e alguns protestos por, em matéria de carne, "só mostrarem isto!"
"Então?", perguntou Diogo ao levantar-se, espremendo-se contra o assento da frente para deixar a namorada passar. "Gostaste?
"Foi bonito."
A multidão enchia já o corredor, fazendo fila para sair da sala, e os dois juntaram-se àquela massa de gente.
"Só não percebo por que motivo estes filmes indianos nem um beijo mostram."
"És um tonto!", riu-se Sheila. "Quando eles olham um para o outro ou quando tocam o nariz, isso é a coisa."
"Que coisa?"Ela premiu-lhe o nariz com um dedo.
"Tu sabes muito bem!..."
"Não sei, não."
"Pois, pois. Faz-te sonso..."
Desaguaram no átrio, que se enchia de gente; eram brancos e negros, crianças e adultos, indianos e mulatos, balalaicas e fardas, toda uma multidão atraída pela famosa matinê indiana dos domingos no Cinema São Tiago.
Esticando o pescoço para a esquerda, Diogo olhou por cima das cabeças para verificar se o bar do Café Dominó ainda estava aberto. O enxame de clientes para lá das portas deu-lhe a resposta.
"Queres tomar alguma coisa?"
Sheila tirou a língua para fora e exibiu uma forma elástica branca e amarfanhada.
"Já tenho uma chuinga."
"Eu reparei lá dentro", retorquiu ele, passando a língua pelos lábios. "Hoje sabes a morango."
"Parvo!"
Diogo riu-se. Aquele "parvo!" pareceu-lhe uma carícia.
"Anda, ao menos faz-me companhia."
Furaram pela multidão ainda compacta e quase lutaram para chegar ao muito concorrido balcão do café ao lado do Cinema São Tiago. Fazia calor e Diogo conseguiu uma nesga entre dois bancos. Ergueu a mão e fez sinal ao empregado logo que ele se virou na sua direcção.
"Cerveja", pediu. "Bem fresca!"
"Manica, Dois ou Laurentina?"
"Laurentina."
O pedido estava feito e Diogo voltou-se para a namorada, apoiando o cotovelo no balcão.
Incomodada com a acumulação de tanta gente num espaço tão quente, Sheila parecia ansiosa por fugir dali. Mas não havia pressas; se ele tinha feito o sacrifício de ir ao cinema ver aquela pepineira só para lhe agradar, ela bem que podia aguentar uns minutinhos enquanto o namorado refrescava a garganta no Café Dominó.
O pensamento regressou-lhe ao filme e ao curioso pormenor de os olhares entre personagens substituírem os beijos. Ia fazer uma pergunta à namorada a propósito dessa peculiaridade do cinema indiano quando sentiu alguém tocar-lhe no ombro.
"Então? Já não se fala aos amigos?"
Virou a cabeça e viu um soldado em uniforme de passeio voltado para ele. Antes de lhe fixar a face, a sua atenção foi atraída para a boina que o soldado trazia na cabeça. Ou, em bom rigor, o que lhe despertou a curiosidade não foi tanto a boina como a cor dela.
Era vermelha.
"Perdão?"
"Então agora finges que não me conheces, pá?"
A boina vermelha significava que o homem que se dirigia a ele era um comando. Que Diogo soubesse não conhecia comando algum. Nunca falara com nenhum, apenas os vira a passar na rua, acantonados em quartéis ou a escoltar comboios que transportavam cargas críticas para o Songo.
Mas se é certo que jamais travara conhecimento com qualquer boina vermelha, o facto é que ali estava um a interpelá-lo.
Sacudiu a cabeça, num esforço para se livrar dos pensamentos e concentrar-se no que importava, e observou por fim o rosto do seu interlocutor. Era um rapaz seco, com uma face longa e estreita, mas o que ele tinha de mais característico e singular era o olhar baço.
"Angelino!?"
O comando sorriu.
"Estava a ver que não me reconhecias!"
Abraçaram-se como velhos amigos; havia anos que Diogo não via Angelino Melro. Trocaram as palavras que se dizem nestas circunstâncias, com perguntas sobre a família e observações cúmplices a propósito dos tempos que tinham passado juntos no Orfeão da Madalena e no FC
Porto.
Diogo apresentou-lhe a namorada com uma ponta de orgulho, consciente do efeito que Sheila produzia em qualquer homem, e a conversa desviou-se para a estranha circunstância de se reencontrarem justamente ali em Tete, uma terriola poeirenta nos confins de África, ambos soldados no meio de uma guerra.
"Agora és comando?"
Angelino bateu no ombro esquerdo, chamando a atenção para as insígnias de alferes.
"E comandante de companhia, ainda por cima!"
A revelação extraiu um esgar estupefacto do amigo. "
"Comandante? Mas tu és oficial de carreira? Desde quando?"
"Desde que o meu comandante adoeceu."
"E então? Se o teu comandante adoeceu, avança o segundo comandante..."
Angelino abanou a cabeça.
"Nos comandos não é assim", explicou. "O comandante da minha companhia é o capitão Janeiro, do quadro de oficiais. Mas ele apanhou uma hepatite e está de cama. Como nos comandos o comandante é o único oficial de carreira da companhia, quem o substitui é sempre o miliciano que ficou mais bem classificado no curso."
Diogo avaliou da cabeça aos pés a figura franzina e seca do amigo, como se duvidasse.
"Tu foste o primeiro classificado do curso de comandos?"
"O voleibol sempre serviu para alguma coisa, hein?", confirmou o amigo. "Enquanto o capitão Janeiro não voltar, o comandante da 6.a Companhia de Comandos de Moçambique é aqui o teu ilustre amigo e antigo colega de equipa."