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Diogo não parecia convencido.

"Mas que idade tens tu afinal?"

"Vinte anos. Porquê?"

"Ainda és muito novo, pá!", exclamou. "Como é possível que estejas a comandar uma companhia de comandos com essa idade?"

Foi a vez de Angelino contemplar o camuflado de Diogo.

"Olha lá, e tu? Que eu saiba somos da mesma idade! Quer- me cá parecer que estás é com inveja!..."

"Não digas disparates! O que acho é que ninguém devia comandar uma companhia com apenas vinte anos. Incluindo eu, claro."

O comandante dos comandos ajeitou-lhe os galões de furriel.

"E o que eu acho é que a chefia de uma unidade deve ser entregue segundo o mérito, não a idade", argumentou. "Ou muito me engano ou tu já estás contaminado pela mentalidade aramista da tropa macaca."

"Qual aramista? Qual tropa macaca?", questionou Diogo, fingindo-se ofendido com a expressão usada pelo amigo. "Eu sou um atirador miliciano destacado."

"Destacado onde? Nas tropas especiais?"

"No BART. Enfiaram-me no Chioco."

A referência ao Chioco foi propositadamente introduzida para impressionar Angelino, mas não surtiu efeito.

"Tropa macaca", insistiu o comando num tom paternalista. "Tsss! Não tens vergonha?"

Vergonha era coisa que jamais ocorrera a Diogo, mas o facto é que, perante a descoberta de que o amigo se tornara comando, de algum modo sentia-se um tudo-nada diminuído, como se estivesse ao lado de um galo de guerra e não passasse de um pinto. O sentimento deixou-o algo acabrunhado, complexado até, e, procurando ganhar tempo para congeminar uma resposta condigna, agarrou na caneca de Laurentina e bebeu metade de um trago.

Quando pousou a cerveja no balcão e limpou com a língua a espuma branca que lhe ficara a borbulhar nos lábios não lhe havia ocorrido ainda qualquer resposta de génio. Percebeu, resignado, que teria de se contentar com algo banal.

"Não tenho vergonha nenhuma", acabou por dizer. "Porquê? Devia ter?"

"Claro que devias! A tropa macaca é formada por um bando de maricas que não fazem porra nenhuma a não ser coçar os tomates o dia inteiro. Nunca te imaginei uma menina..."

"Ora! Vou para onde me mandam!..."

"Se te mandarem vestir saias também vestes? E que à tropa macaca só lhe falta mesmo andar a provar vestidos!"

"Desculpa lá, mas não é bem assim", corrigiu Diogo, a levar o assunto mais a peito. "Que eu saiba, o Chioco não é propriamente uma estação balnear e a malta não anda aqui a reinar. Aquilo é duro, pá. Maningue duro."

Angelino emitiu uma gargalhada seca.

"Duro? Não me faças rir!"

"Podes gozar o que quiseres, mas só eu sei o que tenho de aturar. Vivemos num buraco cercado pelo in, sofremos emboscadas, apanhamos morteiradas, andamos em campos minados, patrulhamos território hostil, fazemos operações de protecção a pontes, a estradas, às linhas de muito alta tensão... olha, que eu saiba os comandos não passam pior. Alguma vez estiveste no Chioco? Fazes alguma ideia do que aquilo é?"

Confrontado com a pergunta, Angelino fitou-o com intensidade e o olhar, habitualmente opaco, agitou-se com uma súbita tonalidade sinistra.

"Achas que a merda do teu buraco no Chioco é guerra? Mas tu sabes o que é guerra a sério? Tu alguma vez viste a guerra como ela verdadeiramente é? Tens por acaso alguma ideia do que é a guerra?"

Aquele inesperado olhar de ferro atrapalhou Diogo, desconcertado por observar tanta certeza no rosto do velho amigo.

"Bem... suponho que sim", titubeou. "Porquê? O que vês tu que eu não veja?"

O comandante dos comandos abanou a cabeça, como se nenhuma explicação que pudesse dar fosse capaz de responder àquela pergunta. Ainda abriu a boca para tentar apresentar um esboço do que lhe ia na mente, mas acabou por fechá-la sem pronunciar mais do que um som ininteligível.

Era impossível descrever a guerra; para perceber a sua essência tornava-se imprescindível vivê-la como os comandos a viviam, uma experiência que não se podia articular por palavras. No mato, em território absolutamente hostil e apenas protegido pela G3 e pelos camaradas, é que se poderia ver a verdade. Se ao menos o amigo pudesse vir com ele!... Logo que formulou o desejo sentiu-se paralisado, os olhos vidrados, como se só então tivessem visto algo que sempre estivera diante dele. Acabara de lhe ocorrer uma ideia.

"Olha lá", disse, voltando-se devagar para Diogo enquanto a ia trabalhando na mente. "Tu queres saber o que é verdadeiramente a guerra?"

"Bem... iá."

"Então vem passar um mês connosco."

Diogo carregou as sobrancelhas numa interrogação, sem entender bem o que acabara de escutar.

"Connosco quem?"

"Com os comandos, pá. Vens ver como é a guerra a doer."

"Tás a reinar?"

"Não, estou a falar muito a sério!"

Diogo apontou para as insígnias do Batalhão de Artilharia 7220, que trazia cosidas ao camuflado.

"Eu já estou destacado, pá."

"Estás destacado para artilharia e é uma questão de te destacares para os comandos, não tem problema nenhum."

"Não é bem assim", corrigiu. "Que eu saiba um gajo não pode ir para os comandos assim do pé para a mão."

"Claro que não", reconheceu Angelino. "Mas não te esqueças que eu sou o comandante da companhia. Conheço muito bem o comandante do teu batalhão porque ainda no outro dia o safei numa situação bem chata em Cademera. Os turras emboscaram-no numa picada e, se não fôssemos nós a ir lá dar- lhe uma mãozinha, ele ficava-se. De maneira que, se eu te pedir emprestado por um mês, o gajo não se vai opor.

Diogo considerou a ideia. Estava já havia três meses no Chioco e a vida naquele buraco era de uma monotonia insuportável. Uma mudança de ares até seria agradável. Além disso, uma experiência nas tropas especiais poderia muito bem revelar-se interessante. O que tinha a perder?

"Mas o que iria eu fazer nos comandos?"

"Ora, acompanhavas-nos nas missões."

"Com que estatuto?"

Angelino passou uma mão pensativa pelo queixo.

"Ficavas como uma espécie de elemento de ligação. Isso arranja-se, não te preocupes. O que não faltam são bons pretextos. Consigo falar com o teu comandante e tratar da papelada de modo a ter-te nos comandos no dia 1." Consultou o calendário no relógio. "Ou seja, daqui a... digamos, quinze dias. Assim passas o próximo mês todo connosco. O que achas?"

Hesitante, Diogo agarrou na caneca e balançou-a, os olhos a observarem a cerveja a dançar, a mente a considerar a possibilidade inesperada.

"Eh pá, não sei..."

O amigo agarrou-lhe o braço e puxou-o levemente, como se o quisesse levar com ele.

"Anda daí! é só um mês! Sais daquela ratoeira no Chioco, ganhas uma experiência nos comandos, vês como é a guerra a sério e a malta põe a conversa em dia. Além disso, quando a coisa terminar até podes fazer uma tatuagem no ombro a dizer Comandos, Dezembro 1972. Maningue naice, não?"

"Prefiro escrever Amor de mãe, Moçambique", gracejou Diogo. "E ainda desenho uma kalash."

"Pões o que quiseres, pá. Alinhas?"

Diogo manteve a atenção presa na cerveja, mirando o líquido dourado que bailava na caneca.

"Um mês, dizes tu?"

"E durante esse tempo não vês o Chioco nem pintado no mapa! Poderá haver melhor?"

O soldado hesitou um instante mais. Tudo aquilo era verdade, mas sabia que a vida nos comandos era dura. Valeria a pena arriscar? Olhou para Sheila como se buscasse conselho, mas a namorada encolheu os ombros; aqueles eram assuntos de militares, que não compreendia.