"Vai dar para vir aqui a Tete?"
Angelino desviou os olhos para Sheila e, com um sorriso, percebeu a importância da pergunta.
"Nos intervalos das missões", assentiu. "O que significa que terás mais oportunidades de vir cá do que se ficares no Chioco. Além do mais não te esqueças que a malta está aquartelada no Mazoi, não é? Fica relativamente perto de Tete. Muito mais do que o Chioco, que está lá para trás do Sol posto!..."
O argumento revelou-se decisivo. Diogo espreitou a cerveja, como se procurasse aí alguma razão para rejeitar o convite, mas percebeu que não encontraria nenhuma resposta no fundo da caneca. Por fim ergueu os olhos para o amigo e, com o sorriso de quem já se vê longe do Chioco, estendeu-lhe a mão.
"Está combinado."
Foi um aperto de mão forte, firmado com a convicção de quem sela um acordo solene. Angelino tirou a boina castanha que o amigo tinha na cabeça e substituiu-a pela sua boina vermelha, como se quisesse apreciar o efeito da mudança. Diogo espreitou-se ao espelho do bar, imaginando-se já um comando, e voltou-se para Sheila.
"Fico bem?"
A rapariga abanou a cabeça e revirou os olhos, resignada às coisas dos homens.
"Maningue chunguila."
O namorado esboçou uma careta.
"O que é isso?"
"Lindo", traduziu ela. "Maningue lindo!"
Diogo riu-se e deu-lhe um beijo. Depois voltou-se para Angelino e ficou surpreendido ao constatar que o amigo observava a cena com uma expressão grave.
"Diverte-te enquanto podes", observou o comando. "Porque quando estiveres connosco vou-te levar para um sítio que nem imaginas que existe."
"Ai sim? Onde é isso?"
Foi a vez de Angelino agarrar na sua caneca e engolir toda a cerveja de um trago só. Depois pousou a caneca no balcão com estrondo, arrotou baixinho e o seu olhar nublado passeou pelo Café Dominó.
"O inferno." ) Parte Três
Inferno
Deixai tocar a esperança, Ó vós que
entrais!
DANTE
A primeira palhota apareceu entre dois embondeiros. Angelino alçou a mão, ordenando ao grupo que se imobilizasse, e fez sinal a um dos seus homens de que avançasse. O soldado ultrapassou a fila com a G3 apontada para a frente e meteu-se pelo capim até desaparecer para além da palhota.
A mochila que Diogo trazia às costas era demasiado pesada, pelo que a pousou no chão com um suspiro de alívio, e ajeitou a arma, preparando-se para qualquer eventualidade. Ao lado Angelino perscrutava o capim, atento aos mais pequenos ruídos.
"Que se passa?", perguntou-lhe Diogo num sussurro. "Onde estamos?"
"Zangaia."
Era o nome do aldeamento para onde se deveriam dirigir, o que significava que haviam chegado ao destino. Olhou em redor e viu o grupo de comandos agachado no trilho com as armas automáticas em prontidão; não era assim que imaginava a primeira parte da missão, considerando o seu perfil.
"Porque parámos?"
"O Samuel foi bater o terreno."
Isso já Diogo havia percebido. O que não entendia era a prontidão para o combate diante de um aldeamento considerado amistoso. Decidiu, contudo, manter-se calado. Aquele era o modo operacional dos comandos e achou que, em tais circunstâncias, não devia submeter o amigo a uma barragem de perguntas; o tempo lhe traria as respostas.
A primeira surgiu, de resto, menos de cinco minutos depois, quando Samuel reapareceu na companhia de dois aldeãos sorridentes e fez um sinal com o braço aos seus camaradas. Ao identificar o sinal, Angelino ergueu-se e deu a ordem.
"Vamos!"
O grupo de comandos levantou-se com descontracção e começou a caminhar despreocupadamente em direcção à palhota. Diogo agarrou na G3 e, encorajado por ver a sua maratona à beira do fim, levantou a mochila e pô-la às costas, preparando- se para o derradeiro esforço. Eram só mais uns metros até se ver livre do peso infernal que arrastara pela picada desde que as Berliets os haviam largado na estrada.
Os soldados entraram na aldeia e foram acolhidos com hospitalidade. Homens e mulheres aproximaram-se, algumas mamanas traziam até bebés embrulhados às costas, e transportaram pequenos troncos para os visitantes se sentarem. Havia crianças a saltitar entre as cubatas, espreitando os recém-chegados com um misto de receio e fascínio.
Angelino cumprimentou o régulo e, depois de trocar as gentilezas habituais com o chefe da aldeia, veio ter com o amigo a rir-se.
"Olha para eles!", disse, apontando para as crianças. "Mostra-lhes uma das tuas prendas e já vais ver!..."
Diogo pousou a mochila com estrondo e, bufando para recuperar o fôlego, arrancou a tira que a selava e meteu a mão no interior, extraindo uma enorme caterpillar vermelha de plástico que mostrou às crianças.
"Unfuna brinquedo?", gritou-lhes Angelino. "Venham buscá-lo!"
Os rapazes hesitaram um momento ainda, os olhos arregalados na direcção do grande carro que Diogo tinha na mão. Um deles, mais atrevido, perdeu a vergonha e veio dali a correr, no que foi imitado pelos restantes. Estabeleceu-se de imediato uma algazarra infantil em redor do atrapalhado Diogo e da sua mochila, o que ateou gargalhadas dos soldados e dos aldeãos.
"Eh pá!", gritou Diogo, tentando controlar a excitação dos rapazes e mantê-los afastados do saco.
"Calma! Calma!"
Sentia-se o Pai Natal do mato. Extraiu uma pistola de plástico que uma criança logo lhe surripiou e a seguir aconteceu o mesmo com um pequeno Fórmula 1 azul, um Tyrrell-Ford do campeão do mundo, Jackie Stewart. Qualquer brinquedo que tirava do saco volatilizava-se entre aqueles braços magros.
"E as miúdas?", perguntou-lhe Angelino, a voz a sobrepor-se ao clamor agitado da rapaziada. "E
as miúdas?"
Diogo viu as raparigas paradas à distância a observá-los e percebeu a observação do amigo.
Vasculhou no saco e retirou uma boneca com um vestido rosa-bebé que exibiu no ar. Os rapazes olharam desconcertados para o brinquedo, não era o que estavam à espera de ver, mas as meninas reagiram de imediato e aproximaram-se. A primeira a chegar ficou com a boneca.
A algazarra prolongou-se enquanto havia brinquedos no saco; nas mãos do soldado apareciam sucessivamente carros, bonecas e armas de plástico. Logo que a distribuição terminou, porém, as crianças largaram Diogo e afastaram-se para brincar na clareira. O saco havia-lhe dado um trabalhão durante a marcha, mas o visitante sentia-se plenamente compensado.
Sentou-se à sombra de uma maçaniqueira e ficou a contemplar a fila de pessoas diante das caixas e dos sacos que os comandos haviam transportado até à aldeia; as caixas traziam medicamentos e os sacos estavam cheios de rações de combate. A distribuição era comandada por Angelino, mas a certa altura o comandante da companhia delegou a tarefa no furriel Sousa e foi inspeccionar as sentinelas que haviam sido distribuídas em torno da aldeia para garantir a segurança de todo o grupo.
Quando a distribuição ficou concluída e Angelino voltou da sua inspecção, os soldados foram convidados para a clareira principal. Os aldeãos acendiam uma fogueira e Diogo viu-os esfolar um cabrito que tinham acabado de matar em honra dos visitantes e atravessá-lo com um pau para o rodar sobre o fogo. Algumas mulheres pilavam o pilão, o som surdo a ecoar como um batuque que marcava o ritmo da vida na aldeia, e uma enorme panela cheia de xima, a tradicional farinha de milho, foi igualmente posta ao lume.