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Os anfitriões distribuíram os primeiros pedaços de carne pelos visitantes e Diogo não pôde deixar de se rir.

"é esta a guerra dos comandos?", perguntou ao sentar-se ao lado de Angelino enquanto trincava o cabrito quente. "é a primeira vez que vos acompanho numa missão e não imaginava que fosse tão violento!..."

O amigo ignorou o tom irónico.

"O psico faz parte do nosso trabalho."

"é duro, sim senhor! Transportar brinquedos, medicamentos e comida? Caramba!" Voltou a rir-se. "Pensava que tinhas dito que com os comandos a guerra era a doer!..."

"E é!", retorquiu Angelino, entretido a limpar com os dentes os últimos vestígios de carne que permaneciam teimosamente agarrados a um osso. "O que nós estamos a fazer chama-se operação de acção psicológica. Nunca ouviste falar? Visitamos aldeamentos amigos, trazemos ajuda e convivemos com o pessoal."

"Ora! Isso também faz o resto da tropa", argumentou Diogo. "Conviver com as populações é o pão nosso de cada dia. O que os comandos fazem qualquer magala faz. O que têm vocês de especial?"

O chefe da missão contemplou demoradamente o osso que segurava na ponta dos dedos.

Estava limpo, já não havia nem um farrapo de carne para arrancar. Atirou o osso para trás das costas e foi com o prato buscar um pedaço de xima, que acompanhou com feijão. Voltou ao lugar e sentou-se pesadamente.

"Queres saber o que nós temos de especial?"

"Não estou cá para outra coisa."

Angelino molhou a xima no feijão e meteu-a na boca com as pontas dos dedos.

"Amanhã já vais ver."

A escova tocou na lama e recuou, como se a testasse. A luz da alvorada era ainda fraca e Diogo teve de aproximar os olhos, à maneira de um míope, para analisar o resultado. Estava seca. Com um movimento brusco e rápido, escovou a parte'interior da sola da bota e voltou-a para o outro lado, estudando as ilhoses metálicas de latão preto unidas pelo atacador; tinham poeira. Passou a escova pelas duas filas paralelas de ilhoses e ergueu-se delas uma fina nuvem de pó. A seguir inspeccionou a parte externa da bota; havia mais lama junto ao calcanhar. Aproximou a escova e esfregou de novo com intensidade.

"Diogo, já estás pronto?"

Ergueu os olhos e viu Angelino aproximar-se com o furriel Sousa.

"Quase, quase."

"Estás a fazer o quê? A cheirar o chulé da bota?"

"A tirar o matope."

"Tem juízo, pá! Calça-te e vem daí! Está na hora!"

Sabendo que não se podia tornar um fardo para os comandos, Diogo encaixou os pés nas botas, pegou na G3 e na mochila e ergueu-se, apressando o passo para se pôr ao lado dos dois homens que haviam passado por ele sem parar.

"Partimos já?"

"Iá, mas agora é a doer. Quero-te a meio da coluna." Deu uma palmada no ombro do furriel que caminhava ao seu lado. "Aqui o Sousa vai atrás de ti para se assegurar de que não te acontece nada.

Não é, Sousa?"

O furriel riu-se.

"Até lhe dou o biberão!"

"Vês? Se quiseres o biberão é só falares com o Sousa. A propósito, já matabichaste?"

"Pára com isso, pá!", protestou Diogo. "Pareces a minha mãe!"

"Sou mais do que a tua mãe", devolveu Angelino, deitando um olhar indagador à espingarda automática do amigo. "E a G3? Está em condições?"

"Vá lá, não me chateies..."

"Eu fiz-te uma pergunta!"

Diogo quase revirou os olhos, mas o tom de comando tornara claro que dessa vez Angelino não falara como seu amigo, mas como comandante da 6.a Companhia de Comandos.

"Passei a noite a limpá-la."

O alferes inclinou a cabeça e, estreitando os olhos, esboçou uma expressão desconfiada.

"Não brinques comigo, pá! Eu vi-te andar por aí depois do jantar. Não foste às pretas?"

"Claro que não."

O amigo riu-se.

"Olha-me esta andorinha, armada em menina! Ontem foi toda a gente às gajas e tu andaste a fazer o quê?

"Não preciso das gajas aqui do aldeamento."

O olhar de Angelino iluminou-se.

"Ah, pois! Tu tens a tua Sheila, não é?" Voltou a rir-se, muito satisfeito consigo próprio. "Estás habituado a bife da cidade e já não te contentas com galinhas do mato! Iá, és um finório!"

Apesar de os primeiros raios de Sol despontarem já sobre o mato, ainda fazia escuro e ali apenas se viam luzes de lanternas a bailar na sombra e escutavam-se ordens dadas em voz baixa.

Diogo integrou-se na coluna e posicionou-se entre Isaías, um maconde ainda estremunhado, e o furriel Sousa, um mulato de Vila Pery. Espreitou o relógio. Seis da manhã; era de facto a hora prevista para se porem a caminho.

"Vamos", murmurou Angelino ao passar pelo furriel. "Tá a andar!"

A ordem de marcha foi dada em voz baixa, como era hábito entre os comandos, e o furriel Sousa passou-a a Diogo, que a passou a outro homem, até todo o grupo se pôr em movimento e fundir-se em silêncio com o mato, como fantasmas a mergulhar na bruma.Havia já três horas que Diogo estava deitado no capim, ao lado de um arbusto, a vigiar o Mazonha. O longo lençol prateado serpenteava pela planície, deslizando gorgolhante uns cinquenta metros mais à frente. O Sol brilhava alto, incendiando-lhe o cocuruto, pelo que se encostou à direita, a tentar refugiar-se na sombra de uma micaia.

"Tá quieto!", murmurou Angelino. "Uma emboscada requer imobilidade total."

"Isto é uma seca", queixou-se Diogo, indicando com a cabeça o rio vazio. "Já aqui estamos há maningue tempo e ainda não apareceu ninguém."

"Tem paciência."

Um zunido enervante cortou a erva e Diogo fez um gesto rápido com a mão, tentando afastar a mosca incómoda. O insecto voltou à carga, serpenteando em torno da cabeça, e o furriel viu- se forçado a enxotá-lo com gestos largos que Angelino teve de travar para evitar que a posição fosse denunciada. Mas a técnica pareceu ter funcionado porque a mosca acabou por desaparecer e a modorra reinstalou-se na margem do rio.

"Quando é que saímos daqui?"O comandante consultou o relógio.

"Mais três horas e pomo-nos na alheta!"

O amigo bufou, esforçando-se por ganhar paciência, e deixou-se ficar quieto. Fazia calor, embora a brisa do rio temperasse o ar. Ouviu uma rã e distraiu-se a tentar localizá-la; pelo som pareceu-lhe que estaria junto a uns ramos que haviam encalhado na margem, mas um novo coaxar deu-lhe a impressão de vir de outra direcção e esforçou-se por lobrigar a rã nuns tufos de capim alto e amarelado. Permaneceu longamente naquele jogo estúpido, procurando a todo o custo situar as rãs em função da direcção dos sucessivos coaxares, mas não logrou identificar a posição de uma única.

O jogo foi interrompido uma hora depois por um súbito marulhar da água. Olhou naquela direcção e viu círculos concêntricos a afastarem-se da superfície, num ponto próximo da margem.

Destravou a G3 e apontou-a para ali, o coração de repente aos pulos. Acontecera alguma coisa.

"Viste aquilo?"

Angelino olhava na mesma direcção.

"lá."

"Achas que são eles?"

A voz de Diogo era ansiosa, mas o amigo parecia manter a calma mais absoluta.

"Eles, quem?"

"Os turras, pá!"

O comandante dos comandos riu baixinho.

"São turras, são."

"Viste-os?"

"Vi pois!"

Diogo olhou para os círculos que se afastavam da superfície da água e voltou a cabeça para o amigo, sem perceber as risadinhas.

"E então? Não abrimos fogo?"

Angelino voltou a rir baixo.

"Ó parvalhão, são jacarés!"

O amigo fixou os olhos na superfície do rio, tentando confirmar a informação.

"Jacarés? Tens a certeza?"

"O Mazonha está cheio deles", retorquiu Angelino, apontando para a água. "Estás a ver aquele tronco ali?"

Diogo olhou na direcção indicada e viu um tronco de árvore a boiar na corrente líquida, o perfil recortado sobre o espelho reluzente. "Iá."