Выбрать главу

Tinham um saco de serapilheira pousado no chão com o interior repleto do que pareciam ser frutos silvestres.

"Que se passa?", quis saber. "Quem é esta gente?"

Samuel indicou uma maçaniqueira encostada a um pequeno monte ali ao lado.

"Estavam ali a apanhar maçanicas."

Contrariado, o comandante respirou fundo e lançou um olhar reprovador ao subordinado.

"Porra! Não podias ter-te mantido invisível?"

O comando, um negro do Moatize bem constituído, abriu os braços num gesto impotente.

"Ia a vigiar o trilho e não as vi", explicou. "Quando dei por ela, estavam as duas a olhar para mim. Que havia eu de fazer? Já não me podia esconder..."

Diogo chegou nesse instante junto dos camaradas e observou a mulher e a criança com curiosidade. Ambas fitavam os soldados com uma evidente expressão de receio; mal se atreviam sequer a mexer-se para não darem mais nas vistas.

"Quem são estas?"

A pergunta não recebeu réplica; na verdade nem precisava, tão evidente era a resposta.

"Pergunta-lhe quem são e de onde vieram", ordenou Angelino, indicando a mulher.

Samuel pôs-se a dialogar com ela em nhungué e recebeu respostas rápidas e nervosas, acompanhadas por uma profusão confusa de gestos.

"Dizem que vivem num aldeamento a duas horas daqui e que vieram cá buscar comida."

"Viram turras?"

O soldado do Moatize voltou a trocar palavras em nhungué com a mulher, que abanou a cabeça com veemência.

"Diz que não. Diz que não há turras por aqui."

Angelino esfregou o queixo, meditativo.. Por esta altura já outros comandos haviam chegado ao local, embora se tivessem colocado em posições de vigilância para garantir a segurança. O

comandante fitou Samuel com uma expressão inquisitiva.

"O que achas?"

"Ela está a mentir", opinou Samuel. "Fez duas horas a pé para vir aqui buscar umas maçanicas?

Não existem maçaniqueiras ao pé do aldeamento?" Fez uma careta céptica. "Hmm... esta tipa está-

nos a partir a vista!..."

O comandante assentiu.

"Também acho", disse. Olhou para a posição do Sol. "Já só temos mais uma hora de luz.

Despacha-te."

Samuel ergueu a G3 e apontou-a na direcção da mulher e da rapariga, que deram um passo horrorizado para trás.

"Não!", travou-o Angelino. "A G3 faz muito barulho."

Sem largar a espingarda automática, o comando negro tirou a faca do cinto. Diogo observou o movimento com estupefacção e voltou-se para Angelino, esperando dele uma contra-ordem que travasse Samuel. Para seu maior pasmo, porém, o amigo tinha também ele extraído a faca do cinto e dera já um passo em frente.

"O que vão vocês fazer?", perguntou Diogo, mal acreditando no que observava diante dele.

"Então? Que é isso?"

Vendo os dois soldados a aproximarem-se com lâminas na mão, a mulher agarrou-se à rapariga, tapando-lhe o rosto, e ambas caíram de joelhos a chorar.

"Lekani kutipaah!" , balbuciou a mulher aos soluços, o rosto molhado com lágrimas de desespero. "Não nos matem!"

Os dois comandos deram um salto e agarraram-nas por trás; Samuel ficou com a mulher e Angelino com a rapariga.

"Pára!", gritou Diogo com horror, sem saber o que fazer para travar aquela loucura, impotente para impedir o que se tornara já inevitável. "Pára com isso, pá! Pára com isso!"

O que se passou a seguir foi estonteantemente rápido e bizarramente lento. Com os braços esquerdos em V a imobilizarem as cabeças das vítimas, os dois comandos fizeram um movimento rápido com as facas e rasgaram os pescoços à sua mercê. Diogo ouviu uma erupção líquida e um gorgorejar sinistro e viu as vítimas espernearem em silêncio até que os comandos as largaram e elas tombaram, a mancha de sangue a alastrar pela terra enquanto se remexiam nas derradeiras pulsões de vida, até ao estertor final, a convulsão que as deixou enfim imobilizadas e estancou o rio vermelho que lhes jorrava das gargantas rotas.

Boquiaberto, Diogo levou um longo instante a despertar do torpor da surpresa.

"Já viste o que vocês fizeram?", perguntou numa fúria súbita, dando um salto em frente e encostando o rosto à cara de Angelino. "Assassino! és um assassino! és um..."

O amigo deu-lhe um empurrão, tentando mantê-lo à distância.

"Cala-te!"

"... criminoso! Filho da puta!" Diogo voltou a colar-se a Angelino e aplicou-lhe um murro no estômago que apanhou o comandante de surpresa. "Cabrão de merda! Viste o que fizeste? Viste o que..."

Uma mão ensanguentada colou-se à boca de Diogo e calou-o, ao mesmo tempo que algo de repente o imobilizou. Era Samuel que o agarrava por trás e o amordaçava com a mesma mão com que degolara a menina de sete anos. Diogo emitiu ainda sons abafados e pontapeou o ar, tentando libertar-se a todo o custo, mas acalmou no mesmo instante em que, com a outra mão, Samuel exibiu ameaçadoramente a faca suja de sangue e lhe encostou a ponta ao pescoço.

"Quietinho."

Angelino, que caíra no chão, ergueu-se devagar e apanhou a sua G3. Depois aproximou-se de Diogo e apontou-lhe um dedo à cara.

"Não voltes a questionar-me numa operação, ouviste?", rugiu entre dentes. "Querias ver o que é a verdadeira guerra?" Indicou os dois cadáveres. "Pois ei-la!"

Samuel largou a sua presa e, sem tirar os olhos dela, ajoelhou-se e pôs-se a limpar a faca às folhas de um arbusto.

Livre do abraço que lhe tolhia os movimentos, Diogo cambaleou e contemplou com angústia os dois corpos estendidos no chão, como se tentasse certificar-se de que eram verdadeiros e tudo não ocorrera durante um pesadelo, mas no mundo real. Rodou a cabeça como num sonho e viu vários comandos em redor a observá-lo; os homens haviam-se aproximado logo que se aperceberam da altercação e pareciam estudá-lo com curiosidade divertida, como se o anormal não fosse matar aquelas pobres criaturas, mas tentar salvá-las.

Angelino mirava-o também, como um professor a submeter o aluno ao crivo de um exame, mas não prolongou o olhar por muito tempo. Ao fim de uns instantes deu meia volta e fez sinal aos seus homens.

"O circo acabou", disse. "Tá a andar!"A água que encontraram no meio do capim era esverdeada de tão nojenta, havia até larvas de mosquito a boiar à superfície, mas isso não impediu Angelino de mergulhar o cantil no charco e extraí-lo repleto de líquido; parecia uma sopa de verduras.

O chefe dos comandos não se intimidou com o aspecto repugnante da água. Retirou do bolso uma pequena caixa de medicamentos, isolou um comprimido e atirou-o para o fluido infecto que lhe enchia o cantil. Aguardou uns minutos e depois desfez o lenço do pescoço, pô-lo por cima de um cantil vazio e vazou a água do primeiro cantil sobre o lenço até encher o segundo. Terminada a operação, examinou a água assim filtrada; mantinha-se ainda algo baça, mas já não se podia dizer que estivesse imunda.

"Já está!", exclamou com satisfação. Estendeu o cantil na direcção de Diogo. "Queres?"

O furriel abanou negativamente a cabeça, mas nada disse e nem sequer olhou para o comandante.

Angelino virou-se e, respirando fundo, sentou-se ao lado do amigo com o cantil na mão. Encostou-se à rocha e exalou o ar como se assim se libertasse de todo o cansaço acumulado ao longo do dia.

A jornada havia sido longa e tinha de se preparar para uma outra que podia ser pior.

"Ainda estás amuado?"

A pergunta quase fez Diogo revirar os olhos de irritação. Sentindo o corpo do comandante ao seu lado, remexeu-se e afastou-se um palmo para marcar as distâncias. Claramente não queria conversas.