"O que foi?", insistiu Angelino. "Cheiro mal?"
O amigo hesitou, como se ponderasse se devia responder ou permanecer em silêncio. Poderia manter-se calado, mas receou parecer demasiado infantil. é certo que tinha bons motivos para pôr o comandante de quarentena, mas isso seria fazer figura de criança mimada. A fúria que o consumia, por outro lado, era demasiado forte. Por que razão se deveria conter?
"Cheiras a crianças mortas!", vociferou baixinho. "Metes-me nojo!"
Angelino ficou momentaneamente calado, como se não tivesse resposta a dar; ou talvez estivesse apenas a pensar no que poderia dizer. Bebericou a água do charco que havia coado e cuspiu para o lado, possivelmente para se livrar do sabor amargo do comprimido que usara para eliminar as larvas de mosquito.
"Queres saber porque matámos aquelas duas?", perguntou por fim.
Diogo nem o encarou.
"Isso já sei", limitou-se a dizer. "Porque és um criminoso."
"Não vês nenhuma outra razão?"
Dessa vez Diogo voltou-se e derramou um olhar de desprezo sobre Angelino.
"Que outra razão poderia haver para degolares uma mulher e uma criança?"
"Por segurança."
A resposta desencadeou em Diogo uma gargalhada forçada.
"Segurança? Deves estar a reinar comigo!", exclamou com desdém. "Que ameaça representavam aquelas duas desgraçadas?
Tinhas medo que a mais pequena te matasse à dentada? Ou que a mais velha te trincasse a pila?
Não me venhas com histórias, pá! Aquelas mortes foram gratuitas! Eram civis, estavam desar-madas e não constituíam a mínima ameaça. Matá-las foi um crime."
Angelino cuspiu novamente para o lado.
"Não fales alto, ouviste? E controla-me essas risadas parvas!" Depois esticou a cabeça e varreu o espaço em redor, como se procurasse alguém. "Samuel?! Samuel?!"
A noite havia despontado e apenas restava no horizonte o clarão moribundo do Sol já desaparecido, como o rasto escarlate de um fantasma que se desvanecia lentamente no céu. Um vulto curvado assomou então da sombra.
"Que é?"
Era Samuel.
"Podes contar aqui ao nosso amigo a operação no monte Xipire?"
"Qual? A dos dois putos?"
"Essa mesmo."
Preocupado com a possibilidade de o seu perfil ser detectável recortado pela luz do crepúsculo, Samuel sentou-se aos pés dos dois interlocutores e pousou a G3 no regaço.
"Foi uma operação comandada pelo alferes Anselmo", disse. "Fomos com um turra que os pides nos entregaram e que supostamente sabia da localização de um aquartelamento do in. O gajo levou-nos até uma palhota e disse que era um receptor de alimentação. Não havia nada lá dentro e ficámos a emboscar a palhota. Como não apareceu ninguém, queimámo-la e apertámos com o turra para nos dar um objectivo verdadeiro."
"Isso é palha", cortou Angelino, impaciente. "Vai ao que interessa nessa história."
Samuel respirou fundo.
"Quando íamos pelo mato em busca de um novo objectivo demos com dois miúdos de mão dada. Um tinha talvez sete anos e o outro uns três. Tentámos sacar-lhes alguma informação, mas eles não disseram nada de útil. Depois pôs-se o problema do que fazer com eles. Era uma das nossas primeiras operações em território do in e, na instrução em Montepuez, tinham-nos dito que as testemunhas são sempre para eliminar. Mas o alferes Anselmo teve maningue pena dos putos, de modo que..."
"Conta o que o Anselmo disse."
O comando hesitou, tentando reconstituir de memória os acontecimentos.
"Disse que eram miúdos desarmados e inofensivos, não constituíam a menor ameaça e seria um crime se os matássemos."
"E então? O que aconteceu?"
"Deixámo-los ir e seguimos o nosso caminho. Duas horas depois caímos numa emboscada.
íamos pelo capim, longe de qualquer trilho, quando apanhámos fogo de toda a parte. Xi! Aquilo foi maningue mau! Os turras até tiros de morteiro despejaram sobre a malta! O Orario foi atingido e nós tivemos de bater em retirada. O problema é que os gajos vieram atrás do pessoal e metralharam-nos constantemente. Ficámos à rasca. Tínhamos de carregar o Orario e estávamos em território do in a ser caçados pelos turras. Andámos dois dias naquilo: eles a disparar e nós a cavar.
Até que o alferes Anselmo lançou uma acção de mão e conseguimos capturar um turra. Os gajos recuaram para se reorganizarem e, aproveitando a trégua, chamámos os helis e saltámos dali para fora."
"Depois interrogaram o turra capturado, não foi?"
"lá."
"O que disse ele?"
Samuel fez uma pausa antes de responder.
"Que uns miúdos foram dizer aos pais que tinham visto a tropa", murmurou num tom seco. "Os pais falaram com os guerrilheiros. Os turras interrogaram os putos sobre o número de soldados do nosso grupo e a direcção em que seguíamos e comunicaram com uma unidade que tinham no sector para onde nós nos dirigíamos." Fez um estalido com a língua. "Foi essa unidade que montou a emboscada."
"Olha lá, desde que és comando quantas vezes estiveste numa operação em que sofreste uma emboscada?"
"Foi só essa vez."
"E em quantas operações houve baixas do nosso lado?"
"Foi só essa vez também." O soldado negro respirou fundo e arreganhou os lábios, exibindo os dentes amarelados. "Filhos da puta dos miúdos!"
Fez-se um silêncio momentâneo entre os três, que Afígelincf deixou prolongar para que a informação fosse devidamente digerida pelo amigo.
"Obrigado, Samuel", disse por fim o comandante da companhia. "Podes ir."
O vulto do soldado fundiu-se de imediato com a sombra. A noite caíra por completo e apenas as luzes das estrelas e do quarto crescente lunar iluminavam o mato com um clarão de prata. A treva enchia-se de ruídos estranhos; eram os insectos e os pássaros envolvidos em duetos mais ou menos melódicos, um criiiii-criiii ali, um tu-tu acolá. Os soldados falavam em sussurros, esforçando-se por se manter invisíveis.
Angelino bebeu a água que lhe restava e pousou o cantil.
"Como vês, em território do in nenhum civil é inofensivo", disse à laia de conclusão. "Nem dois putos com menos de dez anos. Por ter poupado esses miúdos, não só o nosso grupo acabou por não cumprir a missão como se viu emboscado, foi perseguido e sofreu uma baixa. E sabes porquê? Porque o Anselmo não teve tomates para cumprir o seu dever! A segurança do grupo e a execução da missão são as duas prioridades que devem orientar a acção de um comando.
Toda a ameaça a essas prioridades tem de ser eliminada, custe o que custar e por mais repugnante que isso pareça. Isto é uma coisa que nos foi ensinada na instrução em Montepuez e constatada na vida real." Fez um gesto largo, como se quisesse abarcar todo o mato. "Porque isto, meu caro amigo, não é uma fita de Hollywood nem uma história do Mundo de Aventuras, mas a realidade da guerra. Nos filmes e nos livros os bons nunca eliminam mulheres nem crianças e só matam os maus em última instância. O mundo real não é assim. Em território hostil até as mulheres e as crianças constituem, mesmo que não o queiram, ameaças maningue sérias à tua segurança. Se não as eliminares, já sabes: serás morto."
Diogo remexeu-se no lugar.
"Está bem, é verdade que aquelas duas não podiam ser deixadas à solta", admitiu, voltando ao caso do dia. "Mas ao menos podíamos tê-las trazido connosco. Não havia necessidade de as matar..."
"Trazíamo-las connosco, dizes tu?"
"Sim, porque não? Poupavas-lhes a vida e salvaguardavas a nossa segurança."
Angelino soltou uma gargalhada baixa e sem humor.
"Então vou-te contar outra história", disse. "E essa passou-se comigo. Aqui há uns tempos estivemos três semanas numa operação no mato e, já no final, quando nos encaminhávamos em território do in para o ponto onde seríamos recolhidos pelos helis, demos de caras com uma miúda. A gaja devia ter uns quinze anos, não menos. A nossa reacção foi limpá-la imediatamente, para ela não denunciar a nossa presença e não termos os turras todos em cima de nós. Mas eu pensei: a missão está terminada e já vamos de regresso. Para quê eliminá-la? O perigo que a tipa representa é mínimo. Porque não poupá-la? De modo que foi o que fizemos."