Выбрать главу

"Deixaste-a ir embora?"

"Claro que não!", exclamou Angelino de pronto. "Achas que sou parvo ou quê? Não a podíamos largar em liberdade, isso nem pensar. A gaja poderia pôr em risco a segurança da nossa retirada do teatro de operações. O que eu fiz foi pegar nela e trazê-la connosco, estás a perceber?" Mudou o tom de voz. "Oh pá, nem imaginas o pesadelo que foi!"

"O quê? Ela arranjou maneira de contactar os turras?"

"Não é isso, pá!" Angelino aproximou-se do amigo e a voz assumiu um tom de confidência.

"Repara, há três semanas que o pessoal estava no mato. Isso significa que há três semanas que não víamos uma gaja, não é? Éramos vinte e cinco homens,tínhamos ainda de passar a noite no mato antes de sermos recolhidos no dia seguinte, a malta andava toda com tusa e, de repente, ficamos ali com uma miúda de quinze anos toda boa e à mão de semear. O que pensas tu que aconteceu?"

A pergunta fez estremecer Diogo, que se pôs a imaginar a cena e a reconstituir o que lhe era sugerido.

"Vocês... porra! Vocês fizeram-lhe alguma coisa? Vocês..."

O comandante da companhia riu-se.

"Tentativas não faltaram, posso-te garantir", disse. "Toda a gente queria molhar a sopa, como deves calcular. De modo que nessa noite nem preguei olho só para me assegurar de que ninguém tocava na miúda. Ó pá, só te digo que cheguei a arrepender-me de não a ter matado! Iá, caraças! Foi um inferno a noite inteira! Mas no dia seguinte lá a consegui meter no heli e a miúda veio connosco para o quartel. Chegou ao Mazoi pura e casta como a virgem que se calhar não era."

"Fizeste bem."

"A questão não é essa, Diogo. Eu pude garantir que ninguém tocava nela porque foi só uma noite. Agora imagina que eu trazia aquelas duas gajas que hoje nos viram? Achas que as conseguia proteger estas noites todas que vamos estar no mato? Ia ser um regabofe, pá!"

"Mas ao menos sobreviviam..."

"Não sei se sobreviviam." Fez um gesto com a cabeça a indicar os camaradas. "Qualquer gajo aqui que esteja a rebentar de tusa podia sacá-las à socapa pela noitinha, violava-as atrás de um arbusto e matava-as para elas não o denunciarem. Isto são comandos, pá, não são meninas do

ballet!"

"Eu protegia-as."

"Não gozes comigo!", riu-se Angelino, como se a ideia de um furriel da tropa regular a enfrentar um punhado de comandos fosse a coisa mais absurda que jamais ouvira. "Mas, imaginando que esse problema se resolvia, o facto é que as gajas iam ser um fardo enquanto estivéssemos no mato. Eu e tu não pregávamos olho só para as proteger, a malta só pensava nelas em vez de se

concentrar na missão, andávamos sempre preocupados com elas e as tipas arrastavam-se pelo mato a queixar-se que estavam cansadas e tinham fome e mais não sei quê. No fim retiravam- nos agilidade, concentração e capacidade de movimento. Com as gajas aqui connosco, a nossa missão dificilmente seria levada a cabo com sucesso."

"Mas estavam vivas", insistiu Diogo. "E isso é importante."

"É importante nos filmes americanos! Se nós fôssemos trazer connosco cada civil que encontramos no mato, nenhuma missão dos comandos seria bem sucedida, pá. Nem uma! O nosso trabalho não é andar a carregar civis de um lado para o outro em zona hostil; é localizar e eliminar os turras. E é bom que não te esqueças que, em território do in, a população não é neutral. Os civis, mesmo aqueles que têm o aspecto mais inocente do mundo, fazem parte do in."

Diogo reajustou o corpo, acomodando-se contra a rocha junto à qual se haviam sentado.

"Olha, não tenho a certeza de que..." Interrompeu a frase e deu um salto, alarmado. "Eh pá! O

que é isto?"

Reagindo quase instantaneamente, Angelino pôs-se em pé com a G3 em riste.

"O quê? Que se passa?"

"Está aqui alguma coisa, pá!"

"O quê? Onde?"

"Aqui! Na pedra!"

O comandante dos comandos extraiu a lanterna do bolso e acendeu-a, voltando-a para a rocha que haviam escolhido para protecção durante a noite. O foco de luz deambulou nervosamente pela superfície rugosa, fazendo as sombras dançarem com movimentos bruscos, até se imobilizar no que parecia um cilindro brilhante. Fixaram os olhos no cilindro e, pasmados, perceberam que ele se mexia.

"Porra!", exclamou Angelino. "É uma cobra!"

Atraídos pelo súbito sururu, vários comandos convergiram para o foco de luz e admiraram o enorme volume viscoso que se contorcia em torno de um buraco rasgado na base da rocha.

"É jibóia, pá!", constatou Samuel. "Temos de dar cabo dela!"

Ainda contemplaram a possibilidade de usarem a G3, mas era uma solução ruidosa e, por isso, demasiado arriscada e desaconselhável em território hostil. Os soldados acabaram por optar pelas facas e por paus. Retiraram-nas do cinto e atiraram-se à enorme cobra, retalhando-a ainda viva.

Depois enterraram os pedaços e limparam os vestígios com uma pá.

"é a pedra", observou Angelino, enquanto lavava as mãos com um pano molhado. "Como ela se mantém quente durante a noite, as gajas vêm para aqui." Pegou na lanterna e passeou o foco pela base da grande rocha, incidindo no buraco para onde a jibóia se havia dirigido. "Olha ali! Estão a ver? Pode haver mais cobras, caraças!"

"Nesta zona jibóias é mato", confirmou Samuel. "Acho que vamos ter de usar pólvora. Vai fazer um bocadinho de barulho, mas paciência!"

Os comandos retiraram algumas balas das caixas de munições e abriram-nas, despejando a pólvora numa folha de papel. Quando a pólvora se acumulou num pequeno montículo, inseriram a folha à entrada do buraco e deitaram-lhe um fósforo. A pólvora incendiou-se com um fzzzzz

transformado em clarão e os militares viram duas cobras pequenas sair apressadamente do buraco e desaparecer na treva.

A visão das jibóias em fuga desencadeou uma galhofa breve.

"Esta noite já não nos chateiam mais!", exclamou Angelino, encostando-se à rocha. "Seria mais seguro se estivéssemos debaixo de uma árvore, mas como por aqui não há nenhuma teremos de nos contentar com isto."

Nessa noite jantaram a ração de combate. Quando acabaram de comer, enterraram os resíduos para não deixar vestígios da sua passagem por ali e foram-se deitar. Angelino pôs dois homens de vigia em posições opostas; ficaram ambos deitados de barriga para baixo, de modo que a sua silhueta não se recortasse no horizonte.

Os restantes foram dormir junto à grande rocha. Estenderam- se num círculo com a cabeça virada para fora e a G3 encostada ao corpo, sempre preparada para uma eventualidade. Os murmúrios acabaram e a noite foi entregue aos sons do mato, uns estranhos e outros familiares; os grilos estridulavam, os lagartos gecavam, um mocho crocitava. O concerto foi interrompido por uma gargalhada distante.

Diogo ergueu a cabeça, alarmado.

"Angelino!", sussurrou. "Angelino!"

A voz impaciente do comandante dos comandos sussurrou- lhe de volta.

"Que é?"

"Ouviste esta gargalhada?"

Foi a vez de Angelino soltar a dele, mas baixa e curta.

"É uma hiena, pá", disse. "Cala-te e dorme!"

O céu constelado estava limpo de nuvens e o mato era iluminado pelo clarão flamejante do mar de estrelas; o braço da galáxia estendia-se pelo eixo central do firmamento, tão brilhante que a sua luz projectava sombras ténues no mato. Diogo fixou a atenção no Cruzeiro do Sul; parecia-lhe a estrutura de um papagaio de papel. De tanto deambular com os olhos pelas profundezas do céu, começou a sentir vertigens e virou-se de lado, evitando assim contemplar as estrelas.

Fechou os olhos e tentou adormecer, mas as imagens dos acontecimentos do dia não paravam de aflorar. Com a mente a fervilhar de interrogações, Diogo deu voltas e reviravoltas no lugar até chegar à conclusão de que não conseguiria adormecer enquanto não assentasse todas as ideias que se cruzavam na sua cabeça.

"Angelino!", sussurrou ele ao fim de alguns minutos. "Angelino! Estás acordado?"

O amigo respondeu num fio de voz estremunhado.

"Que é?"

"Estou ainda a pensar naquelas duas gajas que matámos hoje."

"Vai dormir, pá!"

Diogo calou-se por momentos, avaliando se valia a pena dizer o que lhe ia na mente. Admitiu deixar a coisa por ali, mas as ideias não lhe saíam da cabeça e, após novas reviravoltas, ergueu-se um pouco e apoiou-se nos cotovelos.

"Sempre ouvi o Marcello dizer que a guerra só se ganha conquistando as mentes e os corações da população."

"Qual Marcello?"

"O Caetano, pá. O presidente do Conselho."

Angelino suspirou pesadamente.

"Esse gajo não tem a mínima noção do que se passa aqui", murmurou o comandante da companhia com um traço de irritação na voz. "Também é daqueles que acham que a guerra no mato é igual à guerra dos filmes e coisa e tal."

"Mas ele tem razão, pá. Como é que ganhas a guerra sem o apoio das populações? E se nós matamos as populações, como podemos nós esperar que elas nos ajudem?"

Novo suspiro.

"Já vi que também não tens noção nenhuma."

"Desculpa, mas não respondeste à minha pergunta", insistiu Diogo, convencido de que a sua ideia era pertinente. "Como podes esperar conquistar o apoio das populações se matas todos os civis que te aparecem pela frente? Como achas que as famílias vão reagir?"

"Eu não mato todos os civis", corrigiu Angelino. "Só mato os civis que se encontram em zona hostil e faço-o porque sei que eles já estão contaminados pelo in."

"E contaminados continuarão se procedermos todos como vocês procedem..."

Foi a vez de Angelino, já bem desperto, se soerguer e se apoiar nos cotovelos.

"Mas tu achas que alguma população em zona hostil virará para o nosso lado só porque poupámos alguns dos seus elementos?", perguntou erguendo a voz, quase exaltado. "Se os pouparmos eles ficam todos contentes porque passam a dispor de informações precisas sobre a nossa força e os nossos movimentos e podem montar-nos emboscadas a seu bel-prazer. Se os pouparmos, eles..."

"Chiu!", sussurrou um soldado que tentava dormir.

Apercebendo-se de que se exaltara, Angelino interrompeu-se e controlou de imediato o nível da voz.

"Tu tens de perceber uma coisa elementar", disse, regressando ao tom murmurante. "Por que razão as populações ficam contaminadas? A resposta é: devido à presença do in. A nossa tropa está nos quartéis, mas os turras misturam-se com as populações, entendes? Se eu vivo numa aldeia e tenho turras a morarem na palhota ao meu lado, é natural que me deixe contaminar por eles. Se não o fizer de livre vontade, faço-o por medo. A tropa entra na minha aldeia e vai-se embora, mas os turras continuam a viver ali. Se eu os denunciar à tropa, outros turras vão aparecer e à primeira oportunidade tratam-me da saúde. Nessas condições, como poderei eu pôr-me ao lado da tropa?"

"Estou a perceber..."

"É por isso que, quando o Marcello diz que é preciso conquistar as mentes e os corações das populações, ele não tem a mínima noção da realidade do terreno. Quando os turras se infiltram numa aldeia, a aldeia fica contaminada e não há nada que possamos fazer. Se os quisermos eliminar, temos de eliminar a aldeia."

"Mas há aldeias que nos são favoráveis", argumentou Diogo. "Ainda ontem fomos dar brinquedos, comida e medicamentos a uma aldeia dessas. Isso prova que, adoptando a política certa, podemos conquistar mentes e corações."

"Isso só é verdade nas aldeias que não foram contaminadas."

"Não foram contaminadas por causa da nossa ajuda."

"Não!", corrigiu Angelino. "Não foram contaminadas apenas porque o in ainda não decidiu contaminá-las. No momento em que os turras entrarem nelas e se puserem a viver ali, vais ver o que acontece!..."