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"Ouviste esta gargalhada?"

Foi a vez de Angelino soltar a dele, mas baixa e curta.

"É uma hiena, pá", disse. "Cala-te e dorme!"

O céu constelado estava limpo de nuvens e o mato era iluminado pelo clarão flamejante do mar de estrelas; o braço da galáxia estendia-se pelo eixo central do firmamento, tão brilhante que a sua luz projectava sombras ténues no mato. Diogo fixou a atenção no Cruzeiro do Sul; parecia-lhe a estrutura de um papagaio de papel. De tanto deambular com os olhos pelas profundezas do céu, começou a sentir vertigens e virou-se de lado, evitando assim contemplar as estrelas.

Fechou os olhos e tentou adormecer, mas as imagens dos acontecimentos do dia não paravam de aflorar. Com a mente a fervilhar de interrogações, Diogo deu voltas e reviravoltas no lugar até chegar à conclusão de que não conseguiria adormecer enquanto não assentasse todas as ideias que se cruzavam na sua cabeça.

"Angelino!", sussurrou ele ao fim de alguns minutos. "Angelino! Estás acordado?"

O amigo respondeu num fio de voz estremunhado.

"Que é?"

"Estou ainda a pensar naquelas duas gajas que matámos hoje."

"Vai dormir, pá!"

Diogo calou-se por momentos, avaliando se valia a pena dizer o que lhe ia na mente. Admitiu deixar a coisa por ali, mas as ideias não lhe saíam da cabeça e, após novas reviravoltas, ergueu-se um pouco e apoiou-se nos cotovelos.

"Sempre ouvi o Marcello dizer que a guerra só se ganha conquistando as mentes e os corações da população."

"Qual Marcello?"

"O Caetano, pá. O presidente do Conselho."

Angelino suspirou pesadamente.

"Esse gajo não tem a mínima noção do que se passa aqui", murmurou o comandante da companhia com um traço de irritação na voz. "Também é daqueles que acham que a guerra no mato é igual à guerra dos filmes e coisa e tal."

"Mas ele tem razão, pá. Como é que ganhas a guerra sem o apoio das populações? E se nós matamos as populações, como podemos nós esperar que elas nos ajudem?"

Novo suspiro.

"Já vi que também não tens noção nenhuma."

"Desculpa, mas não respondeste à minha pergunta", insistiu Diogo, convencido de que a sua ideia era pertinente. "Como podes esperar conquistar o apoio das populações se matas todos os civis que te aparecem pela frente? Como achas que as famílias vão reagir?"

"Eu não mato todos os civis", corrigiu Angelino. "Só mato os civis que se encontram em zona hostil e faço-o porque sei que eles já estão contaminados pelo in."

"E contaminados continuarão se procedermos todos como vocês procedem..."

Foi a vez de Angelino, já bem desperto, se soerguer e se apoiar nos cotovelos.

"Mas tu achas que alguma população em zona hostil virará para o nosso lado só porque poupámos alguns dos seus elementos?", perguntou erguendo a voz, quase exaltado. "Se os pouparmos eles ficam todos contentes porque passam a dispor de informações precisas sobre a nossa força e os nossos movimentos e podem montar-nos emboscadas a seu bel-prazer. Se os pouparmos, eles..."

"Chiu!", sussurrou um soldado que tentava dormir.

Apercebendo-se de que se exaltara, Angelino interrompeu-se e controlou de imediato o nível da voz.

"Tu tens de perceber uma coisa elementar", disse, regressando ao tom murmurante. "Por que razão as populações ficam contaminadas? A resposta é: devido à presença do in. A nossa tropa está nos quartéis, mas os turras misturam-se com as populações, entendes? Se eu vivo numa aldeia e tenho turras a morarem na palhota ao meu lado, é natural que me deixe contaminar por eles. Se não o fizer de livre vontade, faço-o por medo. A tropa entra na minha aldeia e vai-se embora, mas os turras continuam a viver ali. Se eu os denunciar à tropa, outros turras vão aparecer e à primeira oportunidade tratam-me da saúde. Nessas condições, como poderei eu pôr-me ao lado da tropa?"

"Estou a perceber..."

"É por isso que, quando o Marcello diz que é preciso conquistar as mentes e os corações das populações, ele não tem a mínima noção da realidade do terreno. Quando os turras se infiltram numa aldeia, a aldeia fica contaminada e não há nada que possamos fazer. Se os quisermos eliminar, temos de eliminar a aldeia."

"Mas há aldeias que nos são favoráveis", argumentou Diogo. "Ainda ontem fomos dar brinquedos, comida e medicamentos a uma aldeia dessas. Isso prova que, adoptando a política certa, podemos conquistar mentes e corações."

"Isso só é verdade nas aldeias que não foram contaminadas."

"Não foram contaminadas por causa da nossa ajuda."

"Não!", corrigiu Angelino. "Não foram contaminadas apenas porque o in ainda não decidiu contaminá-las. No momento em que os turras entrarem nelas e se puserem a viver ali, vais ver o que acontece!..."

"Os régulos podem expulsá-los..."

O comandante riu-se baixinho.

"Isso queriam eles! Ainda há uns tempos o régulo Buxo, em Mucumbura, fez frente aos turras.

Sabes o que lhe aconteceu? Mataram-no! O resto do pessoal acagaçou-se e submeteu-se. Conclusão: a aldeia dele ficou contaminada. E isto está sempre a acontecer, pá. Os turras assassinam qualquer régulo ou fumo que se ponha do nosso lado. Portanto, mete isto na cabeça: por convicção ou medo, as populações estão sempre do lado de quem vive com elas. A partir do momento em que os turras vivem nas aldeias e a tropa fica nos quartéis, está tudo dito! Numa situação destas, a única maneira de..."

"Chiu!"

A reprimenda calou Angelino. O comandante da companhia consultou o relógio e, sabendo que teriam de se levantar às quatro da manhã, calculou as horas que lhe restavam de sono. Não eram muitas.

"É tarde, pá", disse, voltando a deitar-se e acomodando-se numa posição confortável. "Toca a dormir."

Estendido na sua esteira, Diogo voltou a mirar o firmamento estrelado enquanto digeria o que acabara de ouvir. Mas não levou muito tempo. A treva profunda do céu, que antes lhe desencadeara vertigens, começou a pesar-lhe nos olhos e um minuto mais tarde já o furriel deslizara para o sono profundo.As portinholas foram fechadas e os camiões arrancaram com fragor, os motores a urrarem como uma súbita erupção. A nuvem de pó erguida pelos pneus das

Berliets em movimento envolveu as palhotas e engoliu a aldeia do fumo Mandie, o chefe aliado que os acolhera para a missão que acabavam de levar a cabo. Diogo sentia-se cansado e pousou o olhar nas palhotas que iam ficando para trás, transformando-se em silhuetas que se esfumaram na poeira escura.

O Sol estava a pique e fazia um calor infernal. Diogo esticou a cabeça para aproveitar o movimento do camião onde seguia e refrescar-se com o vento. O ar que lhe bateu na cara era quente e seco, mas sempre lhe parecia melhor do que a fornalha da imobilidade.

Sentiu os olhos pesarem e, espreitando em redor, percebeu que já havia camaradas seus a dormitarem, indiferentes aos solavancos da Berliet pela picada. Tinham acordado cedo e o dia já ia longo. A viagem de regresso ao Mazoi durava uma hora, pelo que o melhor seria fazer como eles.

O soldado ajeitou a G3, acomodou-se no seu lugar e encostou-se ao companheiro dadireita, mergulhando num torpor sonolento. Gostaria de dormir, mas o veículo, como todas as Berliets, tinha a meio da caixa duas filas de bancos virados para fora e os soldados ficavam todos voltados para o mato; se adormecesse poderia cair da viatura, pelo que se limitou a dormitar.

Bonk.

Veio a si com um salto e olhou em volta, observando alguns companheiros de ar estremunhado a tentarem igualmente" perceber o que acontecera. Fora um solavanco mais forte do que o habitual.