Trocaram olhares cúmplices e sorriram, voltando a acomodar-se para retomar o sono. Mas depressa veio outro solavanco violento e mais outro, este último tão grande que todos ficaram por momentos suspensos no ar.
"Porra para esta merda!", protestou Diogo. "Parece uma montanha russa!"
Um negro franzino, macua dos arredores de Nampula, arreganhou os lábios e exibiu uma fileira reluzente de dentes brancos.
"Um comando até de pé dorme", proclamou, mudando de posição para se pôr mais confortável.
"Só a tropa da Metrópole é que precisa de colchão, como as meninas. és menina?"
Diogo mudou de posição, desesperado com o assento duro da Berliet.
"Vai-te lixar!"
O macua riu-se e fechou os olhos, regressando instantaneamente ao torpor sonolento. Mas Diogo não conseguiu descontrair-se; os sucessivos abanões do camião eram demasiado desconfortáveis para isso, pelo que ficou a contemplar o mato. O Sol flamejava alto e inclemente, e nada mexia em redor; apenas se via capim, terra vermelha, embondeiros gigantescos e os morros de muchém erguidos pelas colónias de térmitas.
A picada desembocou numa estrada de terra batida e a viagem tornou-se mais cómoda, mas Diogo manteve-se desperto porque sabia que Tete era já a seguir. Viu as primeiras casas e estudou as pessoas que circulavam pelas ruas; tentava avistar Sheila, mas, embora a cidade fosse pequena, sabia que dificilmente daria com ela a andar ao ar livre àquela hora. Teve ganas de saltar lá para fora e ir ao hospital procurá-la, mas foi apenas um impulso inconsequente e deixou-se estar até o casario ficar para trás e a coluna meter pela estrada de Vila Pery e da Beira, a mesma que passava pelo Mazoi.
O furriel Sousa, que viera sempre no lugar ao lado do condutor, saltou pouco depois para a carga e juntou-se aos homens sob o seu comando. Três ainda dormitavam, embalados pelo balouçar monótono da Berliet, mas os restantes haviam despertado quando a coluna circulou por Tete e passavam agora um maço de LM entre todos.
"Está tudo bem?"
"Sem problemas, meu furriel."
"Vai uma bazuca?"
A pergunta agitou o grupo, subitamente interessado.
"Ainda há, meu furriel?"
Sousa dobrou-se sobre o assento da frente e ergueu uma caixa de madeira que tilintou com o movimento. Pousou a caixa diante dos soldados e, com um sorriso triunfal, extraiu uma garrafinha de Manica.
"Está quente, mas não faz mal", disse. "É cerveja!"
O ambiente na Berliet animou e todos agarraram a sua garrafa, arrancando a tampa na fechadura da portinhola do camião e despejando a cerveja quente pela garganta.
"Agora só falta uma gaja, caraças!"
"O quê? Não te chegou a mamalhuda de ontem?"
"As gajas nunca chegam, pá! Quantas mais melhor!" "Iá."
O tema, regado a cerveja, alegrou os comandos. Seguiram-se alguns comentários sobre as mulheres com quem haviam estado na véspera, no aldeamento Mandie, a troco de vinte escudos, mas sem dar pormenores. Eram como irmãos, mas havia coisas que cada um reservava para si.
A Diogo também coubera uma pretinha, mas recusara. A rejeição valera-lhe a troça dos camaradas, embora isso não o tivesse incomodado; não era comando nem tinha nascido em Moçambique, não se sentia obrigado a partilhar aqueles rituais de iniciação. Por isso, e apesar de integrar o grupo havia já quinze dias, achava-se um estranho e mantinha-se relutante em participar na galhofa como se fosse um deles. Estava a meio da comissão e faltavam-lhe outros quinze dias para terminar aquela missão entre os comandos; a verdade é que não via a hora de regressar ao BART. Desde que integrara as tropas especiais que a sua perspectiva sobre a guerra de facto se alterara, mas não para melhor. Seria um alívio voltar ao Chioco. Ficou por isso a observar as brincadeiras entre os comandos como se não fosse participante, mas mero espectador.
As cervejas esvaziaram-se e os soldados recostaram-se nos assentos, iniciando um concerto de arrotos que voltou a divertidos; tudo servia para se entreterem. Mas depressa a algazarra acalmou e o furriel Sousa, preocupado com o protegido de Angelino, sentou-se ao lado de Diogo.
"Então?", interpelou-o. "Divertiste-te?"
Não era a pergunta que Diogo esperava, pelo que ficou momentaneamente sem saber o que dizer.
"Acho que sim", acabou por murmurar.
"Deste uns tiraços?"
"Dois ou três para o ar."
O alferes aplicou-lhe uma palmada na perna.
"Um destes dias vais ter de dar um balázio em alguém", disse. "Ninguém é verdadeiramente um comando se não matar um turra, caraças! Ainda tens dez dias para mostrares o que vales!"
"Mas eu não sou um comando."
O furriel abriu-se num sorriso.
"Lá isso é verdade!"
Diogo voltou-se e mirou a Berliet que os seguia. Era ali que viajava o régulo e os respectivos filhos, que haviam capturado durante a operação que tinham levado a cabo nessa madrugada.
"O que vai acontecer aos presos?"
"Vamos entregá-los à PIDE."
"Mas o que lhes irá suceder?"
"Serão interrogados."
"E depois?"
Sousa encolheu os ombros com indiferença.
"Sei lá", exclamou. "Depende do que disserem e das informações que a PIDE tiver sobre eles. Se os tipos..."
Zzzzzziiim mmmm
Rata-ta-ta-ta-ta-ta!
O caos irrompeu sem aviso na Berliet. Os zumbidos de bala rasgaram o ar e vários projécteis ricochetearam na blindagem do camião numa sinfonia de morte.
"Emboscada!"
Quando o furriel Sousa gritou já todos os soldados se haviam espalhado pela carga para se abrigarem das balas invisíveis. Diogo sentiu uma chicotada de adrenalina incendiar-lhe o sangue e começou a ver o caos que se desencadeara em seu redor ao retardador, como em câmara lenta, os sentidos aguçados, as cores mais vivas, os sons mais presentes, os movimentos incrivelmente demorados. Mesmo ao lado escutou um gemido romper no meio da confusão e apercebeu-se de que alguém ficara ferido. A sua prioridade naquele instante era, todavia, outra, e concentrou-se antes nos sons realmente importantes, as detonações e os zumbidos de projécteis metálicos que rasgavam o ar; eram eles a verdadeira ameaça, os ruídos que requeriam toda a sua atenção.
A Berliet emitiu um ronco de esforço, mas uma nova saraivada cortou-lhe a progressão e o camião deu um solavanco e imobilizou-se na berma. Ouvia-se um matraquear ininterrupto de armas automáticas e os soldados, passada a surpresa, esperaram uma aberta com as G3 em riste.
"Agora!"
À primeira pausa, os comandos expuseram os canos das armas em busca de alvos, mas foram acolhidos por uma nova saraivada de balas e a situação tornou-se outra vez confusa.
Alguns soldados caíram sobre outros, Diogo via pernas e braços e tudo aos saltos, sempre aos solavancos e sempre em câmara lenta, e só depois de algum pandemônio os homens conseguiram pôr-se em posição e abrir fogo sobre o mato.
A intensidade da emboscada inimiga diminuiu, mas um súbito movimento no capim denunciou posições. "Ali! Ali!"
Os comandos fizeram convergir o fogo sobre o local onde detectaram o movimento e Diogo, mais para aplacar a angústia do que para atingir alguém, seguiu-lhes o exemplo e lançou granadas de mão e descarregou a G3 e todos os medos naquela direcção.
Os homens que vinham nas restantes Berliets da coluna apareceram entretanto, indicando outras posições suspeitas para onde as armas dos comandos se voltaram.