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Percorreram o corredor até chegarem à sala. A ordenança tentou abrir a porta, mas estava fechada à chave; a reunião havia sido marcada para as treze e trinta e, como era previsível, eles eram os primeiros a chegar.

"O nosso coronel ainda deve estar a almoçar", disse a ordenança para o chefe dos comandos, afastando-se pelo corredor em passo lesto. "Vou avisá-lo de que o meu alferes já chegou."

Angelino encostou-se à parede e tirou do bolso um LM, que acendeu com o seu Zippo de estimação. Uma nuvem de fumo branco ergueu-se diante do rosto, esvoaçando pelos olhos meditativos.

"Em que estás a pensar?"

"Na vingança."

"Eh pá, o que aconteceu foi guerra", argumentou Diogo. "Umas vezes somos nós quem faz emboscadas, outras vezes são eles. Já se sabe, quem vai à guerra dá e leva."

Angelino desviou o olhar furioso na direcção do amigo.

"Deves estar a fazer confusão", rosnou. "Os comandos não levam, só dão."

"Hoje levaram."

O alferes colou o cigarro à boca e aspirou com força,"deixando o fumo sair com lentidão.

"Já vais ver o troco que lhes vamos dar."

"Estás a falar a quente, pá. Tem calma."

Angelino fitou o amigo e a expressão baça pareceu cintilar de fúria muda.

"Ouve, Diogo, tens de perceber uma coisa de uma vez por todas", rosnou num tom controlado.

"Os comandos não são tropa macaca como vocês. Eu sei isso, vocês sabem isso e os turras também.

Que os turras se metam com a tropa macaca é uma coisa. Mas que se metam connosco é diferente.

Nós íamos com as nossas boinas vermelhas, não íamos? Os tipos sabiam muito bem que nós éramos comandos e mesmo assim abriram fogo. Tudo bem. Vão já levar com o troco e aprender de uma vez por todas que connosco ninguém se mete! Ouviste? Ninguém!"

"Até parece que foste pessoalmente alvejado", observou Diogo, intimidado com aquela fúria fria. "Eu é que estive lá e, ó p'ra mim, não estou tão enxofrado como tu. Por isso acalma-te! Que eu saiba não levaste com as balas. Além do mais, isto é guerra, pá."

"Não estás a entender o problema", insistiu Angelino. "Os gajos meteram-se com os comandos e não podem. E isso que eles vão ter de aprender. Se uma coisa destas passar impune, amanhã voltam a fazer-nos uma emboscada igual ou ainda pior. A malta não pode deixar que estes cabrões percam o respeito aos comandos. Nós não estamos aqui a brincar e eles já vão perceber isso de uma forma muito clara."

"O que vais fazer? Queres queimar outra vez as palhotas que já queimámos? Os gajos fugiram, pá!"

Angelino deitou o cigarro para o chão e esmagou-o com a ponta da bota.

"Isso é o que vamos ver", sentenciou. "Esta reunião vai servir para planear a resposta."

Calaram-se por momentos. Diogo voltou a experimentar a porta e confirmou que estava trancada.

"Achas que me deixam assistir?"

Angelino abanou a cabeça.

"O quê? Tu? A uma reunião com o governador? Deves estar a reinar, pá."

"Então não estou aqui a fazer nada", constatou o amigo. "Quanto tempo vai demorar esta merda?"

"Sei lá! Tanto pode durar meia hora como a tarde toda. Porquê?"

Um brilho de esperança cintilou no olhar de Diogo.

"Então vou dar ali um passeio a Tete, tá?", disse. "Volto daqui a pouco."

"Não me digas que queres ir ter com a tua Sheila..."

A pergunta emudeceu Diogo, subitamente ruborizado. Ao ver a reacção do amigo, Angelino percebeu que havia acertado em cheio e foi a vez de ele próprio corar, mas de irritação.

"Não tens vergonha?", repreendeu-o. "Um grupo nosso foi emboscado há uma hora, tu próprio ias lá dentro, e só pensas numa gaja? Mas que raio de soldado és tu?"

Diogo suspirou.

" Angelino, eu não sou um comando e não penso como vocês", justificou-se. "Há uma hora estava eu a levar tiros e não sei se amanhã me volta a suceder o mesmo e se escapo. Posso ficar com a bacia partida, como o Sousa, ou até bater a bota. A verdade é que não sei o que me vai acontecer. Se tenho uma oportunidade de ir ver a minha namorada, porque não aproveitar?"

O amigo fitou-o com intensidade. Apesar da sua habitual expressão fria e calculista era evidente que estava à beira de explodir. O autodomínio, porém, sobrepôs-se às emoções e o comando acabou por meter a mão nas calças, retirar um pequeno objecto metálico do bolso e lançá-lo na direcção de Diogo. O furriel interceptou o objecto no ar com um gesto reflexo e, abrindo o punho, viu-o pousado na palma da mão. Era a chave da Berliet.

"Tens uma hora."

*

A maca transportava um rapaz com a perna esquerda engessada e amputada acima do joelho; tratava-se evidentemente de um soldado que havia pisado uma mina e que estava ainda sob o efeito de um anestésico. A enfermeira empurrava a maca pelo corredor do hospital e, vendo o frasco de soro prestes a saltar do gancho, estendeu o braço para ajeitar a sua posição. Apercebeu-se nesse momento de um vulto atrás dela e deu um salto de alarme.

"Diogo!", exclamou Sheila ao voltar-se, pousando a mão sobre o peito como se quisesse conter o coração. "Que susto!"

"Desculpa. Foi sem querer!..."

"Que estás aqui a fazer?"

"Sofremos uma emboscada esta manhã e..."

A rapariga arregalou os olhos, horrorizada, e estudou-o da cabeça aos pés com um movimento rápido e ansioso.

"Oh!", interrompeu-o. "Estás ferido?"

"Não, está tudo bem", disse ele, abrindo os braços para provar que se encontrava intacto. "Mas tivemos de vir à ZOT e aproveitei para dar cá um salto e matar saudades."

Fundiram-se num abraço sentido, feito de saudade e alívio. O corpo de Sheila tremia, evidentemente assustada por o namorado ter estado envolvido numa emboscada. Enquanto a enlaçava, e ao sentir-lhe a agitação, Diogo considerou se não teria feito melhor em inventar uma desculpa em vez de lhe ter contado a verdade. A realidade, porém, é que acreditava que a verdade os aproximaria e renovaria a ideia de que deviam viver um momento de cada vez, saborear todos os instantes como se fossem os últimos. Não que ele acreditasse nisso. Pelo contrário, achava-se imortal e não lhe passava pela cabeça a possibilidade de ser atingido por uma bala ou de pisar uma mina; isso era para os outros, não para ele. Mas os riscos que corria impressionavam a namorada e isso era algo que Diogo estava disposto a usar em seu favor.

O abraço foi longo, mas Sheila acabou por se libertar quando se sentiu mais calma.

"Quanto tempo ficas em Tete?"

"Não muito", disse ele. "Deram-me uma hora e já passaram quinze minutos."

"Só!?" A rapariga suspirou, angustiada com os perigos que o namorado correra e irritada com o pouco tempo de que dispunha com ele. "Não podes passar cá a noite?"

Diogo consultou o relógio e abanou a cabeça.

"Tenho trinta e cinco minutos, se descontarmos o tempo que levo a voltar à ZOT. Não mais."

"Mas eu preciso de falar contigo", argumentou ela. "Tenho uma coisa muito importante para te dizer."

O soldado inclinou a cabeça, num esgar trocista.

"Então diz."

Sheila desviou o olhar para a maca. O ferido continuava inconsciente, mas o facto é que não podia permanecer ali.

"Agora não pode ser", disse. "Tenho de levar este paciente para a enfermaria."

"Então contas-me noutro dia."

Sheila abanou a cabeça, rejeitando liminarmente essa possibilidade. Lançou um olhar perscrutador pela janela do corredor, em busca de um lugar onde pudessem falar à vontade, e a imagem do edifício vizinho deu-lhe a resposta.

"Espera-me à porta da farmácia, pode ser?"

A farmácia abria-se para o exterior graças a uma comprida fileira de janelas ao longo das paredes que a rodeavam. Enquanto aguardava, Diogo espreitou o interior do edifício e viu um farmacêutico indiano sentado numa mesa em redor de um microscópio. Devia estar a fazer análises clínicas, presumiu. Sentiu nesse momento uma batida surda e voltou-se para o Zambeze.