Um Alouette sobrevoava o rio e perfazia um arco já para virar na direcção do hospital. Devia trazer mais feridos; um desgraçado que pisara uma mina ou alguém atingido durante mais uma emboscada.
"Diogo?"
O soldado virou-se e viu Sheila caminhar na direcção dele; a rapariga vinha com uma expressão séria no rosto e os dedos a remoinhar o cabelo, evidentemente nervosa. Aproximou-se e caíram de novo nos braços um do outro.
"Está tudo bem?", quis ele saber, sentindo-a perturbada. "Se ainda andas preocupada com a emboscada, não andes. Estou óptimo, não me aconteceu nada."
Sheila suspirou.
"Graças a Deus!", murmurou. "Não sei o que faria se te sucedesse alguma coisa!..."
Diogo afagou-lhe o cabelo, carinhoso.
"Não me aconteceu nada", repetiu. "Está tudo bem. Acalma-te."
A rapariga anichou-se mais uma vez no corpo do namorado e deixou-se ali ficar um momento, a face a repousar-lhe no peito, as pálpebras cerradas num instante de sossego. Depois respirou fundo e levantou o olhar.
"Tenho uma coisa maningue importante para te contar." Ergueu a mão e exibiu dois dedos.
"Uma não. Duas."
O soldado franziu o sobrolho.
"O quê?", perguntou ele num tom brincalhão. "Não me vais dizer que o Porto perdeu com a CUF, pois não? Isso já eu sei!..."
Apesar do peso que lhe oprimia o peito, Sheila não conseguiu reprimir uma risada.
"Tonto! Não é nada disso!"
"Então?"
Ela desviou o olhar e respirou fundo mais uma vez, como se procurasse ganhar coragem.
Encheu os pulmões de ar e fitou-o de novo.
"Tenho um namorado."
Diogo riu-se, divertido com a expressão solene com que ela proclamara uma coisa tão óbvia.
"Claro que tens, palerma. E espero que estejas satisfeita com ele."
Sheila revirou os olhos.
"Não estás a perceber", disse ela. "Tenho outro namorado."
O anúncio atingiu Diogo como uma bala. Cravou na rapariga um olhar interrogador e segurou-a pelos ombros, de modo a evitar que ela lhe fugisse com a cara.
"Outro namorado como? Que queres dizer com isso?"
"Chama-se Ismael."
A confirmação deixou Diogo boquiaberto. Esperava que ela negasse ou que lhe explicasse que ele havia entendido mal ou lhe dissesse qualquer outra coisa que mostrasse que falavam de assuntos diferentes, mas o nome que Sheila lhe atirou provava que não havia equívocos, que ele entendera tudo à primeira, que ela queria mesmo dizer o que dissera e que ele compreendera bem.
"Mas... o que...", gaguejou Diogo, tentando reordenar os pensamentos. "Quem é esse? Como é que... que..."
"Foi antes de te conhecer", esclareceu a rapariga, adivinhando a torrente de perguntas que o assaltavam. "Comecei a namorar com ele há dois anos, antes até de ir para Lourenço Marques tirar Enfermagem. Ele fez a tropa na Matola, nos arredores da cidade, e encontrávamo-nos todos os fins-de-semana. Mas desde que terminei o curso e vim para Tete que não o vejo, uma vez que ainda não lhe concederam licença." Passou a mão pela face de Diogo, num gesto de ternura. "Ou seja, não estou com o Ismael desde que te conheci."
Diogo assentiu, percebendo a situação mas com dificuldade em aceitá-la.
"Só agora é que me dizes?"
Ela encolheu os ombros e baixou a cabeça, embaraçada.
"Tentei muitas vezes", murmurou. "Mas nunca tive coragem."
O rapaz teve vontade de gritar e recriminá-la, mas pôs-se na posição dela e conteve-se. Será que, se ele tivesse uma namorada em Portugal, lhe contaria logo? Gostaria de responder que sim, mas sabia que provavelmente se manteria calado. O que tinha a fazer, considerou, era lidar com a situação com a mesma coragem que ela mostrava nesse momento.
"E agora?", quis saber, receando a resposta. "O que vais fazer?"
"Tenho de resolver a situação, não é?"
"Pois tens. Não nos podes ter aos dois." Forçou um sorriso. "Os maometanos aceitam que um homem tenha duas mulheres, mas não me parece que aceitem uma mulher com dois homens."
Ela baixou a cabeça.
"Eu sei", sussurrou. "Mas não é fácil."
"O que não é fácil?", exclamou Diogo, desprendendo-se da rapariga e sentindo que começava a perder o controlo das emoções. "Parece-me até muito simples. Há dois namorados e tens de escolher um. Escolhe."
Sheila manteve a cabeça baixa e reprimiu um soluço.
"Tenho andado toda a semana angustiada, meu Deus! Não sei o que faça!"
"É assim tão difícil escolher entre nós os dois?"
"Não é isso", sussurrou ela, desfazendo-se em novos soluços. "Não é isso."
"Então porque choras?"
Ela levantou a cabeça e deixou Diogo ver-lhe a face molhada de lágrimas.
"Porque te escolhi a ti."
Disse-o com um gemido, embora a ele aquela confissão soasse a música. Sheila escolhera-o.
Diogo abriu os braços e acolheu-a, soltando uma gargalhada feliz.
"E é caso para chorares, minha parva?", perguntou com ternura. "Acho que escolheste maningue bem! Porque choras?" Ergueu uma sobrancelha desconfiada. "Não me digas que ainda gostas dele!..."
A rapariga refugiou-se-lhe no peito. Abanou a cabeça e fungou, tentando recuperar a compostura. "Não."
"Então? Porque choras?"
Fungou mais uma vez e levantou os olhos, fitando-o com intensidade.
"Porque estou grávida."
Segundo tiro. Como se tivesse sido atingido por mais uma bala traiçoeira, Diogo deu um passo para trás, atónito, e procurou-lhe os olhos para se certificar de que ouvira bem.
"O quê?"
Afogada em vergonha, Sheila baixou as pálpebras e caiu para a frente, desamparada, deixando a cabeça voltar a colar-se-lhe ao peito, como se estivesse desesperada e clamasse por protecção.
"Estou grávida e não sei quem é o pai."O líquido negro fumegante ondulava na chávena num remoinho lento. Parecia petróleo a escaldar.
"Vai um café?"
Angelino, muito hirto e de olhar carregado, abanou ligeiramente a cabeça.
"Não, meu coronel. Vou comer quando voltar ao Mazoi."
O coronel Varela apreciou a recusa. Se fosse tropa regular, o seu interlocutor já se teria agarrado à chávena e se calhar até tinha pedido umas bolachas para acompanhar. Mas não aquele homem. O
alferes era um comando e estava ali para actuar, não para confraternizar.
Na verdade, Armando Varela estava habituado a ver os comandos como rivais; no fim de contas ele próprio era coronel pára-quedista. Mas desde que assumira simultaneamente as funções de chefe militar e de governador de Tete, já não podia olhar para os comandos com os olhos antagonistas de um pára-quedista. Pairava agora acima das rivalidades e tinha o dever de coordenar todas aquelas forças.O coronel girou a cabeça pela sala de planeamento operacional, uma divisão simples com paredes de madeira, e pareceu- lhe tudo a postos. Pousado sobre a mesa estendia-se um grande mapa a mostrar o regulado de Gandali, situado poucos quilómetros a sul da ZOT; aliás, as instalações da Zona Operacional de Tete encontravam-se tão perto do regulado que até apareciam assinaladas no mapa.
Em redor da mesa, quatro homens aguardavam que o chefe militar desse início à reunião. O
coronel Varela olhou-os um a um. O homem da Força Aérea, capitão Vasco Telles, e o comandante do Batalhão de Caçadores 17, major Josué Ponces, mantinham-se numa expectativa tranquila; era natural, tratava-se de dois executores que simplesmente aguardavam as ordens do seu superior hierárquico.