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Francisco virou-se para os comandos e apontou para o alvo.

"Mata a gazela!"

Os soldados viraram as G3 de imediato para o chefe da aldeia e abriram fogo. O corpo do fumo Wiriyamu foi sacudido pela súbita erupção de rajadas e tombou desarticulado como um trapo abandonado.

Um murmúrio de horror percorreu a multidão; se os soldados nem o fumo respeitavam, ninguém estava em segurança. Também Diogo se sentia estupefacto com o que acabara de testemunhar e a ideia de intervir cruzou-lhe a mente. No entanto, olhou em redor e percebeu pela expressão dos comandos que qualquer palavra sua teria efeitos contraproducentes; poderiam até matar mais gente só para o irritar. Optou pelo silêncio.

"Então? Tem aqui turra ou não tem?"

O homem da DGS esperava que a súbita execução do fumo soltasse algumas línguas, mas ninguém disse nada. A constatação fê-lo arfar de fúria. Virou o dedo na direcção de um homem novo, teria vinte e poucos anos e era decerto um guerrilheiro à paisana.

"Tu aí!", chamou. "Como te chamas?"

O homem tremia por se ver interpelado.

"Tinta, patrão."

"Onde estão os turra aqui?"

"Eu... eu não sei, patrão. Aqui não há turra."

Francisco pegou numa maça de madeira que habitualmente trazia consigo nos interrogatórios e aproximou-se do homem.

"Se dizes isso é porque és tu o turra!"

"Eu não sou turra, patrão. Eu sou..."

A frase não foi terminada porque, com um movimento rápido e inesperado, Francisco girou a maça e bateu com grande violência na cabeça de Tinta, que ficou logo ali estendido; ninguém conseguiria sobreviver a uma pancada daquelas. O interrogador pôs um pé sobre o corpo inerte e depois o outro, e, para espanto geral, começou a saltitar em cima do cadáver. Os comandos riram com o inusitado da situação; só mesmo da mente daquele homem poderiam vir ideias assim.

A estupefacção de Diogo não tinha limites. Se queria saber como era um interrogatório da DGS, o que se passava diante dele revelava-se eloquente. Sentiu vontade de vomitar e afastou- se, refugiando-se na orla da clareira, de onde observou à distância os acontecimentos que se seguiram.

Francisco retomou o interrogatório. Tinha a certeza absoluta de que os guerrilheiros estavam infiltrados naquela aldeia e precisava de os identificar para obter informações. Chamou um terceiro homem, que se apresentou como Kupensar, e fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito aos anteriores. Como Kupensar nada disse, esmurrou-o e pontapeou-o até o deixar exangue. Nessa altura deu-lhe um tiro na cabeça e chamou o seguinte. O mesmo processo se repetiu com Chaphuka, com Djoni e com mais alguns homens em idade de combater, terminando sempre com as mesmas agressões e o inevitável tiro final.

"Parem lá com isso!"

O interrogatório foi interrompido por Angelino, que regressou da sua inspecção e entrou apressadamente na clareira.

"O quê?", perguntou Francisco, apoiando-se na maça enquanto arfava para recuperar o fôlego.

"O que foi?"

"Não temos muito tempo", avisou o comandante dos comandos, batendo com o indicador no mostrador do relógio. "Ainda é preciso limpar isto tudo e voltar para a estrada a pé antes que a noite caia."

Francisco passou as costas da mão pela testa e limpou o suor, deixando inadvertidamente um sulco de sangue a manchar-lhe a fronte.

"Eu sei."

"E não é só isso", acrescentou Angelino. "Uma posição estática é uma posição vulnerável. Temos de nos pôr em movimento se queremos evitar surpresas."

"E só mais um bocadinho."

A intervenção do amigo deu a Diogo a esperança de que tudo acabasse de imediato, mas não foi o que aconteceu. O comandante dos comandos fez tenção de se afastar e deteve-se quando pousou o olhar nos cadáveres estendidos no chão.

"Os gajos disseram alguma coisa?"

"Não", retorquiu Francisco. "A maior parte desta malta é turra. E os que não são têm medo de pôr a boca no trombone. Deve haver turras aqui no meio a vigiá-los."

"Eles têm medo dos turras?"

"Pelos vistos." O rosto do ex-legionário abriu-se num sorriso sem humor. "Mas a partir de agora vão ter mais medo de nós..."

O chefe dos comandos assentiu e deu meia volta. Diogo correu no seu encalço e agarrou-lhe no ombro, travando-o.

"Não paras isto?", perguntou, fazendo um gesto para a multidão. "Os gajos estão a matar civis a sangue frio!..."

Angelino lançou um novo olhar em direcção aos corpos estendidos no chão e abanou a cabeça com uma expressão severa.

"O interrogatório está a ser conduzido pela PIDE", disse, exprimindo o óbvio. "Nem te atrevas a intrometer-te. Se não queres participar, deixa-te estar quieto. Se te meteres, arriscas-te a sofrer as consequências."

"Mas..."

O comandante calou-o com um gesto peremptório.

"Não há 'mas' nem meio 'mas'!", vociferou. "Já te disse que a guerra não é um filme americano em que os bons poupam os maus." Indicou os cadáveres com a cabeça. "A guerra é isto." Colou o indicador ao peito do amigo, como se o dedo fosse o cano de uma arma. "Podes não ser um comando, mas vieste com os comandos e espero que te comportes como tal. Não quero ouvir da tua parte nem mais um 'mas' enquanto durar a porra desta operação, ouviste?"

Sem esperar pela resposta, Angelino virou costas e afastou- se, iniciando mais uma ronda; estava preocupado com a segurança do perímetro e não tinha disposição para aturar conversa de tropa macaca. O importante era assegurar-se da disciplina entre os seus homens. Já havia apanhado dois soldados a violarem uma mulher dentro de uma cubata e precisava de se certificar de que isso não voltava a acontecer; era perigoso abandonar posições de vigilância durante uma operação.

Diogo ficou a vê-lo desaparecer entre as palhotas e sentiu-se impotente para travar o que sucedia em seu redor; parecia-lhe que uma corrente brutal o arrastava para o fundo do rio, indiferente aos seus esforços de se salvar. Abanou a cabeça e deu meia volta, cabisbaixo e derrotado.

"Miúdos estúpidos", murmurou. "Metem armas nas mãos de miúdos estúpidos!..."

Pressentindo a urgência de terminar o interrogatório e sem ter ainda arrancado daquela gente quaisquer informações palpáveis, o inquisidor da DGS decidiu mudar de táctica. Afastou-se do grupo de homens e dirigiu-se para as mulheres, que se remexeram, inquietas, quando o viram aproximar-se. Francisco apontou para uma delas.

"Tu aí, levanta-te!"

Uma mulher com uma criança de nove meses ao colo ficou com a impressão de que o dedo a identificava e ainda olhou em redor, na esperança de que fosse outra a interpelada, mas como ninguém se acusou teve de se render à evidência.

"Eu, patrão?"

"Iá, tu. Põe-te em pé!"

A mulher ajeitou o filho ao colo, acomodando-o na capulana azul e dourada, e levantou-se.

Quando olhou na direcção do homem da DGS viu que ele lhe apontava uma espingarda automática.

Crack.

A mulher tombou com um buraco a meio da testa. A criança desenvencilhou-se da capulana e sentou-se ao lado do cadáver da mãe a chorar convulsivamente. O ranho escorria-lhe das narinas para o lábio superior e para dentro da boca. A multidão mostrava-se atordoada e ninguém se atreveu a levantar-se para ir buscar a criança. O choro desconsolado encheu a clareira.

"Quem é turra?", berrou Francisco para a multidão. "Aponta o turra para mim, porque senão és tu o turra!"

Os aldeãos pareciam paralisados pelo horror. Algumas pessoas choravam amargamente e as restantes não tinham reacção, pareciam estonteadas, talvez nem sequer acreditassem que estavam despertas e que o pesadelo decorria no mundo real.