"Quem é turra?", insistiu o homem da DGS. "Quem..."
"Chega!"
Regressado da inspecção, Angelino entrou apressadamente na clareira e de novo deteve o interrogatório, reavivando as esperanças de Diogo de que toda aquela loucura fosse travada.
Desagradado com a interrupção, Francisco acolheu o comandante dos comandos com mal disfarçada hostilidade.
"Que é agora?"
"Temos de limpar isto e ir embora", ordenou Angelino. "Já aqui estamos há demasiado tempo."
O operacional da DGS suspirou, frustrado; não tinha conseguido extrair nada de útil daquela gente. Porém, como antigo legionário, entendia a urgência do alferes.
"Está bem", rendeu-se. Fez um sinal para Samuel. "Comecem a liquidá-los."
O comando negro apontou para uma mulher.
"Tu! Levanta-te!"
A mulher obedeceu, apesar do medo que lhe tolhia os movimentos, e foi de imediato abatida.
"Agora tu!"
O homem apontado ergueu-se, algo atarantado, e foi logo morto. Outros soldados seguiram o exemplo, ordenando a uma e outra pessoa que se levantassem e abatendo-as de imediato.
Angelino decidiu intervir mais uma vez.
"Parem com isso!", ordenou. "O que estão vocês a fazer?"
As execuções foram suspensas e Francisco voltou-se para o comandante da 6.a Companhia, cada vez mais frustrado com aquelas interrupções contínuas.
"Temos de os liquidar."
"Mas isto não é maneira de proceder", insistiu Angelino. "Não será melhor levarmos esta gente toda para outro sítio?"
"Qual sítio?"
"Sei lá! Um aldeamento, por exemplo. Há por aí tantos..."
"Estás a sugerir que andemos no mato com esta malta toda, como cães a escoltar um rebanho?"
"Nós não, claro. Acho é que a ZOT não sabe da existência de tanta população por aqui. Se calhar era melhor informarmos a ZOT e eles depois tratavam de vir cá e aldear este pessoal todo."
"Estás a gozar?", admirou-se o homem da DGS, revirando os olhos. "Claro que a ZOT sabe da existência destas populações. Não te esqueças que o chefe mandou limpar toda esta zona. Ou não tens as mesmas ordens?"
Angelino hesitou. De facto havia recebido instruções na ZOT para limpar o teatro de operações.
Em toda aquela região só existiam guerrilheiros disfarçados de civis e civis afectos ao inimigo; até as crianças poderiam ser fontes de informação preciosas ou apoio para os turras. Além do mais, toda aquela gente era testemunha dos interrogatórios e dos métodos a que haviam recorrido. Estas testemunhas tinham de ser caladas.
O chefe dos comandos assentiu com a cabeça, dando luz verde a Francisco. Apesar de não ser ele a comandar aquele grupo de forças especiais, o operacional da DGS olhou para os homens da 6.a Companhia como se eles estivessem sob as suas ordens.
"P'ani wense!", ordenou-lhes em nhungué, a língua da maior parte dos comandos. "Matem-nos a todos! P'ani wense! Quem sobreviver vai denunciar-nos!"
Retomaram o mesmo processo de execuções. Os soldados diziam a um homem ou a uma mulher que se levantassem e, logo que os aldeãos se erguiam, abatiam-nos a tiro. Parecia um exercício de fogo real, tão real que usava alvos humanos vivos.
Samuel, todavia, acabou por se cansar daquele método um pouco repetitivo e decidiu inovar.
Aproximou-se de uma rapariga de quatro anos, acariciou-lhe a cabeça e ajoelhou-se diante dela, pondo-se ao mesmo nível.
"Tens fome?", perguntou com simulada compaixão. Sem esperar pela resposta, forçou o cano da G3 pela boca dá criança. "Toma o biberão." Empurrou a arma até ao fundo. "Chupa!"
Crack.
A rapariga tombou com a nuca desfeita. A ideia foi de imediato aproveitada pelos camaradas, que passaram a executar aldeãos com tiros na boca. Havia disparos por toda a parte e os habitantes da aldeia rolavam como alvos de caça. Tudo isto era de mais para Diogo, que vomitou pela terceira vez consecutiva e voltou o rosto para o mato, escutando apenas os gritos e os tiros.
No meio da confusão, Angelino ergueu as mãos e mais uma vez mandou suspender fogo.
"Eh pá, isto não pode ser assim!", interrompeu de novo o comandante da 6.a Companhia. "E
maningue gente e se os vamos matar todos a tiro nunca mais saímos daqui. Além disso, nem há balas que cheguem. Se os turras atacarem apanham-nos sem munições."
Francisco arremessou-lhe um olhar carregado de repreensão; já estava a ficar farto daquelas objecções constantes.
"O que sugeres?"
O chefe dos comandos procurou em redor e fixou a atenção nas cubatas que cercavam a clareira.
Concebeu a ideia quase instantaneamente e apontou com um gesto peremptório para as construções de palha com telhados cónicos.
"Toda a gente para as palhotas!", ordenou, pondo-se a empurrar as pessoas que estavam à sua frente. "Vamos! Toda a gente!"
Os soldados e os dois homens da DGS ficaram por momentos imóveis, sem perceber o que o comandante tinha em mente.
"O que estás a fazer?", perguntou Francisco.
Em resposta, Angelino bateu com a mão no cinto.
"Usamos as granadas."
Os olhos do interrogador da DGS brilharam pela primeira vez de aprovação.
"Boa ideia!"
Os militares começaram a imitar o alferes e a empurrar os aldeãos para as palhotas; pareciam pastores a conduzir o gado para o matadouro. As mulheres escondiam-se umas atrás das outras, muito juntas e a proteger os filhos com o corpo e os braços, mas obedeciam e, em passos pequenos, empurrando-se e encolhendo-se, foram-se enfiando nas cubatas como formigas em carreira.
Angelino, talvez satisfeito com a ideia que iria apressar o processo de limpeza da aldeia, pôs-se a cantarolar enquanto a massa humana fazia fila para entrar nas casas de palha.
"Quem quer casar comigo?", entoou, recorrendo à rima infantil da Carochinha. "Quem quer casar comigo, que sou formosa e bonitinha?"
Da fila saiu projectada uma menina de cinco anos que se abraçou à perna do comandante da 6.a Companhia.
"N'danhonho cufa!"
A menina chorava e balbuciava palavras em nhungué. Angelino olhou-a, estupefacto. Esperava tudo naquele sítio e naquele momento; tudo menos que uma criança o viesse abraçar a meio da rima da Carochinha.
líN'danhonho cufa!" , gemeu a pequena. " Faxa vore, lekani kundip'a! Lekani kundip'a! N'danhonho cufa!"
Sentiu-a tremer de pavor e, embora não falasse nhungué, estava familiarizado com algumas palavras. " Faxa vore", uma corruptela do português faz favor; e sobretudo " lekani kundip'a", que já ouvira inúmeras vezes da boca de pessoas que imploravam misericórdia quando os soldados se preparavam para lhes dar o tiro. " Lekani kundip'a!" "Não me mates!" Mas eram adultos que o diziam, não crianças como aquela menina de cara molhada e olhos a implorar-lhe misericórdia, a gritar " faxa vore" enquanto o abraçava pela perna.
"Lekani kundip'a!"
Angelino suspirou, de súbito angustiado. Como poderia ele matar uma criança que, apesar de tão tenra idade, sabia que ia morrer e lhe implorava misericórdia? Já matara crianças, mas não meninas que o abraçavam no desespero dos condenados a rogarem faxa vore por clemência; não crianças assim.
O chefe dos comandos encarou os seus homens.
"Esta não entra nas palhotas."
Os soldados entreolharam-se, desconcertados.
"Então o que lhe acontece? Deixamo-la sozinha no mato?"
A atenção de Angelino voltou-se para a mulher em lágrimas que, na fila da morte, observava à beira do pânico absoluto a filha agarrada ao militar, no horror de a ver ao pé de um homem tão perigoso.