"Não", decidiu o alferes. "Ela também fica de fora!"
Samuel foi buscar a mulher e arrastou-a para junto do comandante. Ainda sem perceber o que lhe ia acontecer, mas presumindo o pior, a aldeã abraçou a filha e ficaram ambas agarradas uma à outra; choravam de medo, convencidas de que iam ser mortas.
"Diz-lhes que fujam!", ordenou Angelino enquanto apontava para o mato. "Fujam!"
"Tauani!", traduziu Samuel, indicando a mesma direcção. "Tauani"
A mulher arregalou os olhos e voltou-se para Angelino, como em busca de confirmação. O
alferes fez um gesto tranquilizador com a cabeça e indicou-lhe o horizonte. A aldeã não hesitou mais; desconfiava de um truque, mas nada tinha a perder. Pegou na filha e correu pela clareira, correu com ela ao colo até cruzar a orla da aldeia, passar ao lado de Diogo e das poças ácidas dos seus vómitos, meter-se pelo capim e desaparecer no mato.
As atenções voltaram-se para as filas de pessoas arrebanhadas à porta das cubatas.
"Fechem-nas nas palhotas!", ordenou o comandante, recuperando o sangue frio. "Despachem-se com isso!"
Os soldados e os homens da DGS empurraram os últimos aldeãos para as cabanas e ficaram à espera que o processo se completasse por toda a aldeia. Ainda havia ordens berradas aqui e ali e ocasionais gritos de angústia ou súplicas de misericórdia, mas o som gradualmente dominante passou a ser o dos gemidos de pavor das pessoas encerradas dentro das cubatas.
Quando já não restava qualquer civil na clareira, os soldados agarraram nas granadas e fixaram a atenção no comandante, à espera da ordem.
"Agora!"
Num movimento sincronizado, tiraram as cavilhas das granadas, abriram uma frecha nas portas e lançaram os explosivos lá para dentro. Depois trancaram as portas e afastaram-se.
As explosões sucederam-se quase em simultâneo, irrompendo pelas cubatas como uma reacção em cadeia.
Quando o saracoteado de detonações terminou, fez-se silêncio na aldeia. As palhotas fumegavam e o ar cheirava a pólvora. Os soldados abriram as portas destroçadas e viram os corpos mutilados e espalhados pelo solo, o sangue escarrapachado contra a palha.
Cada comando inspeccionou uma palhota. Ao penetrar na sua, Angelino ouviu um gemido, identificou o sobrevivente e viu que era uma mulher gravemente ferida. Sem hesitar, apontou-lhe a G3 à cabeça e premiu o gatilho.
Ouviam-se tiros ocasionais por toda a aldeia; um disparo numa palhota e outro noutra.
"Mata-o!"
O berro numa cubata ali perto chamou a atenção do chefe dos comandos, que saiu de imediato para a clareira de modo a verificar o que se passava.
"Mata-o!"
Voltou-se na direcção do grito e viu um soldado de arma apontada para a orla da aldeia. No meio do fumo vislumbrou um garoto a correr; parecia uma impala aos saltos.
"Mata-o, caraças!"
Um camarada instava o furriel Bauke, o comando de G3 apontada, a abater o garoto, mas o tiro não partiu e o rapaz mergulhou por fim no capim e desapareceu no mato, escapando à mira da arma.
"Porra, pá! Deixaste-o fugir!"
O furriel baixou a espingarda automática e abanou a cabeça, quase desalentado.
"Não fui capaz..."
Era mais uma testemunha que se escapulia, reflectiu Angelino, preocupado com o tempo excessivo que estavam a passar naquela aldeia. Havia guerrilheiros por todo o sector e o garoto ia possivelmente cair-lhes nas mãos e dar-lhes a localização dos comandos, pondo em risco a segurança da unidade. Se não fosse o miúdo seriam as duas que ele próprio, num estúpido momento de fraqueza, deixara escapar. Uma emboscada ao grupo de comandos tornava-se provável se não actuassem com rapidez.
"Vamos embora!", gritou o comandante, fazendo com o braço sinal aos seus homens. "Toda a gente em movimento! Vamos sair daqui!"
Os soldados reagruparam-se e, enquanto uns homens rabiscavam uma mensagem final numa chapa de zinco que por ali encontraram, Angelino foi buscar Diogo. Arrastou-o pela clareira e lançou-o para o grupo, como se fosse um fardo. O amigo parecia um sonâmbulo; deixava-se puxar e empurrar, aparentemente atordoado. As palhotas ardiam em redor, num inferno de chamas e fumo, e havia corpos espalhados por toda a parte; alguns apresentavam-se em posições impossíveis, como manequins partidos, e um pendia de uma árvore.
Com a apatia de um ébrio, a atenção de Diogo descaiu para a frase garatujada na chapa que os soldados largaram ao lado de uma pilha de cadáveres. Leu-a num estado de letargia, entorpecido, como num sonho. Transporta mina tropa mata. Era um aviso e uma assinatura.
"Tá a andar."
Ao sinal do comandante, os homens enfiaram pelo capim com os olhos a dardejarem em todas as direcções e as G3 em riste, procurando sinais de presença inimiga, avaliando ameaças, inspeccionando o terreno.
Angelino conseguia abarcar com o olhar todo o grupo sob as suas ordens e contabilizou os soldados para se certificar de que não faltava ninguém. Um, dois, três, quatro... vinte e cinco. Vinte e cinco rapazes, nem uma baixa; não havia comandos mais duros do que aqueles. E certo que não tinha ocorrido combate e que os guerrilheiros que acreditava terem abatido eram os homens e rapazes da aldeia que se fingiam da população e que haviam sido apanhados desarmados; certamente tinham as Kalashnikov escondidas ali por perto. Mas quase sentiu orgulho nos seus comandos. Vinte e cinco bravos, para quem olhasse de fora eram cinco brancos e vinte negros e mulatos, mas entre eles a cor tornara-se invisível. Apenas via o Samuel e o Bauke e o Sebola; não havia ali raças, juntava-os uma amizade forjada pela guerra, irmãos para sempre unidos pelo sangue e pela morte.
Caminhando em silêncio no meio do grupo de combate, Diogo não via em seu redor irmãos de armas, mas miúdos a quem a tropa tinha desumanizado e transformado em ceifeiros de vida, algozes que haviam encharcado de sangue aquele dia fatídico. A noite despontava já no horizonte quando os soldados se abeiraram da estrada para serem recolhidos, os rostos transpirados iluminados pelo disco avermelhado do astro poente, como se até o Sol quisesse gravar no firmamento os feitos da jornada de carnificina.
As silhuetas quase cambaleavam na embriaguez da matança. A aldeia tornara-se uma memória difusa; não passava já de uma mão-cheia de palhotas varridas pelo fogo e cobertas por um manto de cinzas espectrais. Os soldados estavam reduzidos a figuras exangues recortadas contra o manto sanguíneo do céu crepuscular, como se as suas entranhas estivessem irremediavelmente impregnadas do hálito fétido da morte.
O primeiro sinal foi o estranho odor que impregnava o ar. José Branco preenchia uma requisição a solicitar uma nova remessa de algodão e mercurocromo para o hospital quando o cheiro familiar lhe invadiu o gabinete e o fez imobilizar a caneta. Seguiu a fonte do odor até à janela atrás dele e percebeu que vinha de fora.
"Que estranho", murmurou.
Identificou o cheiro como o que era produzido quando se queimavam vasos sanguíneos para os laquear. Apesar de intrigante, não era um odor anormal em instalações hospitalares e de imediato a sua atenção regressou aos papéis que rabiscava. Limitou-se a fazer uma nota mental. O doutor Feitor devia estar a proceder a alguma cirurgia de emergência; logo que pudesse teria de mandar verificar as fugas de ar da sala de operações. Só lhe faltava mais este problema!
Ainda hesitou, lembrando-se que o sector das cirurgias se situava no outro lado do perímetro hospitalar e que os cheiros vindos daí dificilmente chegariam ao seu gabinete, mas depressa concluiu que devia haver uma explicação lógica qualquer, talvez até uma corrente de vento, e decidiu remeter o assunto para mais tarde. A caneta continuou a deslizar pela folha da requisição, imparável e imperturbável no seu labor burocrático.