Alguns minutos depois, porém, o médico sentiu um burburinho no exterior. Os ares andavam decididamente agitados. Voltou a hesitar. Deveria ir ver o que se passava ou seria melhor terminar o que estava a fazer? Odiava a burocracia inerente às suas funções e aquele era um pretexto excelente para fugir ao estupidificante trabalho de amanuense. Mas o facto é que precisava urgemtemente de mais algodão e mercurocromo. Já que estava com a mão naquela tarefa administrativa, raciocinou, mais valia levá-la até ao fim e aviar toda a papelada de vez. Optou por isso por se concentrar nas requisições.
A porta abriu-se de repente e a irmã Lúcia entrou-lhe de rompante pelo gabinete.
"Doutor! Doutor!"
O director do hospital ergueu a cabeça, espantado com o alarme que via no rosto habitualmente sereno da sua enfermeira-chefe.
"Que é, Lúcia? O que se passa?"
A espanhola vinha afogueada e rubra como uma malagueta; parecia transtornada.
"Já viu que pasai"
O médico fez uma expressão de absoluta ignorância.
"Não. O que está a acontecer?"
A enfermeira-chefe pegou-o pela mão e puxou-o.
"Venga, por Dios! Venga ver."
Sempre em estado de grande agitação, a irmã Lúcia arrastou José pelo corredor do hospital até à porta principal. Uma vez no exterior indicou-lhe fios de fumo negro que galgavam o horizonte à direita, serpenteando pelo céu como fuligem vomitada por vulcões invisíveis. O director do hospital orientou-se e percebeu que algo estava a arder na zona da estrada para Vila Pery, mas não viu razão para tanto alarme.
"É um incêndio?"
Lúcia abanou a cabeça com impaciência.
" Ay, madre miar, exclamou num estado de grande agitação. "No siente el odor?"
José Branco inspirou o ar e voltou a identificar o cheiro característico da laqueação de vasos sanguíneos, típico das salas de operações, só que ainda mais forte ao ar livre.
"é uma cirurgia", constatou. "O Feitor está a operar alguém?"
A enfermeira-chefe reagiu à observação com um estalido nervoso da língua. Abanou a cabeça com vigor e apontou na direcção dos fios de fumo negro que se elevavam como minierupções sobre o mato longínquo.
"El odor vem dali, doutor!"
"Dali?", admirou-se ele. "Desculpe, mas o que..."
Lúcia ergueu a mão com vigor, fazendo-lhe sinal de que se calasse de imediato.
"Escuche! Escuche!"
O médico inclinou a cabeça naquela direcção e prestou atenção. Uns sons surdos pareciam reverberar no ar. Estranhou e concentrou-se; os barulhos longínquos lembravam-lhe os estampidos dos foguetes da sua infância em Penafiel em dias de S. Martinho. Mas foguetes ali? Após um instante de perplexidade, percebeu enfim que aqueles sons surdos eram detonações.
Detonações.
Olhou interrogadoramente para a espanhola, compreendendo enfim o alarme que ela manifestava mas sem perceber com exactidão o significado de tudo aquilo.
"Os turras estão a atacar?"
Um clima de efervescência febril tomou conta de Tete. Os boatos cruzavam-se como moscas.
Corriam informações contraditórias sobre a presença dos terroristas às portas da cidade; dizia-se muita coisa, mas ao certo ninguém sabia o que se passava. Os próprios militares que afluíam ao hospital, trazendo feridos ou de visita a um paciente internado, ignoravam o que sucedia e apenas forneciam conjecturas mais ou menos informadas.
Quando terminou o serviço, José Branco foi para casa. A vivenda no topo da colina estava vazia, uma vez que Mimicas permanecia na Beira e não dera ainda notícias. O médico foi para o jardim descontrair-se com um whisky com soda na mão. Ficou a contemplar o Zambeze, a atenção a dançar entre o rio e o ocasional Alouette que aterrava com o seu zumbido característico na pequena pista circular do hospital, a uns quinhentos metros de distância.
O funcionário da farmácia que substituía interinamente Mimicas, um indiano que por acaso vivia na vizinhança, apareceu pouco depois para saber "se a senhora doutora está melhor". É que José tinha justificado a ausência da mulher com uma doença que a forçara a receber tratamento na clínica do Macuti, na Beira. A meio da conversa, o funcionário deu-lhe conta dos boatos que circulavam na farmácia, mas também aí havia mais incertezas do que factos concretos.
"O senhor doutor não acha que estão a vir muitos helicópteros?", perguntou-lhe o homem com uma ponta de ansiedade. "é mais do que o habitual, não é?
Era uma boa pergunta. Um Alouette acabara de aterrar no hospital e o ar vibrava ainda ao ritmo da rotação das hélices. O médico avaliou o que observara até aí e comparou o movimento do dia com o que usualmente ocorria.
"Normal", acabou por concluir. "O tráfego de helicópteros parece-me o normal."
A constatação tranquilizou-os um pouco. O funcionário despediu-se e deixou o director do hospital entregue a ele mesmo no jardim da casa. O céu tingia-se de um azul cada vez mais escuro e José ficou a ver a noite descer sobre Tete. Depois recolheu a casa para jantar. Ernesto serviu-lhe a sua especialidade, o empadão de esparguete e carne, e foi quando estava a terminar a refeição que o telefone tocou.
"Senhor doutor, é para si", anunciou Ernesto do outro lado da sala. "é a irmã Lúcia."
O médico sentia-se cansado e o empadão estava-lhe a saber mesmo bem. A última coisa que lhe apetecia era levantar-se para ir resolver ainda mais um problema.
"Pergunta-lhe se lhe posso ligar daqui a pouco."
O criado abanou a cabeça.
"A irmã precisa de si no hospital", comunicou-lhe. "Diz que é urgente."
Uma pequena multidão enxameava o pátio interior do hospital e a atmosfera que José Branco encontrou era de grande excitação; havia gritos e choros, como por vezes acontece nos hospitais, só que dessa vez envolvendo um número anormalmente grande de pessoas.
Lobrigou o hábito azul-claro da enfermeira-chefe no meio de um grupo de mulheres esfarrapadas e foi ter com ela; o olhar exprimia surpresa com toda a agitação que encontrara.
"Llegaram agora no machibombo de Changara", explicou- lhe a irmã Lúcia, puxando-o pelo braço para o afastar do meio da multidão. "Dizem que a zona onde vivem fue destruída e que não sabem de los parentes."
"Changara foi destruída?", admirou-se o médico. "E depois da destruição apanharam o machibombo? Não estou a perceber..."
A freira emitiu um estalido impaciente com a língua.
"Ay, doutor, não é isso", corrigiu. "O machibombo que vénia de Changara encontrou esta multidão no meio da estrada, a unos quinze quilómetros aqui de Tete. La mayor parte eran mujeres y ninos e algunas estavam semi desnudadas. Dizem que houve ataques e mostravam-se em pânico."
"Foram atacadas?"
"Elas, não. Pero dizem que a região fue destruída."
"Pelos turras?"
Em resposta, a irmã Lúcia pegou-lhe na mão e, de passo muito decidido, levou-o pelos corredores do hospital.
"Venga."