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"Os sobreviventes vêm aí", murmurou, taciturno. "Vamos ouvir o que eles têm para dizer."As acácias rubras agitavam-se num murmúrio verde e laranja, como abanadores gigantes, protegendo do sol agreste os passeios poeirentos da cidade amarelada. Fazia calor, tanto que o próprio dia parecia derramar suor, e o vento quente que soprava baixo entre as árvores, serpenteando pelas ruas até arrebitar pequenos torvelinhos de pó, era afinal o único alívio que aquela fornalha concedia aos homens. O ar acariciava as peles húmidas de transpiração e refrescava o corpo, mas era só um instante, um bálsamo fugaz; o breve momento de conforto logo se esgotava e então voltava o ardor, um abrasamento intenso e pesado, sufocante, tão escaldante que dava a impressão de queimar o ar.

"Puf, que calor!", desabafou Mimicas enquanto abanava o leque com vigor. "Está que não se pode!"

Os dois casais abandonaram o monumental edifício da Capitania do Porto com três rapazes negros no encalço a carregarem as malas e instalaram-se à sombra de uma acácia para recuperar o fôlego. José Branco sentou-se sobre uma mala, abanando um lenço para se refrescar, e olhou para o casal que os acompanhava."Então, Domingos? Contente por teres finalmente chegado à tua terra?"

O advogado parecia sufocar no seu fato escuro. Aliviou o nó da gravata de cornucópias e passou as costas das mãos pela testa de modo a limpar a transpiração que se acumulava em gotículas.

"Caramba! Já nem me lembrava deste calor!" Espreitou de relance para trás, onde se encontrava o paquete que acabava de ancorar no porto de Lourenço Marques. "Ali é que se ia bem, hem?"

"Lá isso ia", assentiu o médico. "É pena aqui na rua não haver ar condicionado!..."

Riram-se todos, divertidos com o absurdo da ideia. Um grupo de negros começou a chamar e a acenar do outro lado da praça e Domingos abriu-se num sorriso, devolvendo os acenos.

"Já chegou a minha gente!", exclamou. "Vocês têm quem vos venha buscar?"

"Ah, sim. Não te preocupes!"

"Guardaste os nossos contactos, não guardaste?"

José Branco indicou o bolso da camisa.

"Está aqui tudo. Depois ligo para irmos tomar um copo."

"Um copo não", corrigiu Albertina com um olhar cúmplice para Mimicas. "Nós as duas ainda vamos juntas às compras, não é verdade?"

"Ah, pois! Quero coisar umas coisas!..."

O grande homem negro engravatado e a mulher fizeram sinal aos rapazinhos esfarrapados de que pegassem nas suas malas e despediram-se do casal amigo.

"Então vamos andando", disse Domingos. "Divirtam-se em Lourenço Marques!"

José e Mimicas deixaram-se ficar à sombra, sentados sobre as malas a apreciar a rua e a praça que se abria em frente. O grande largo estava bem arranjado, rodeado de árvores, o piso cuidadosamente tratado em calçada à portuguesa com abundantes motivos geométricos; ao longo do perímetro erguiam-se belas construções de ferro ao estilo Belle Époque, no centro um coreto abobadado, ao lado alguns quiosques elegantes, aqui e ali um poste de iluminação e vastos bancos públicos; não fossem os homens e mulheres negros e dir-se-ia estarem na Europa mediterrânica. A única coisa que estranhavam era a condução à esquerda; não entendiam como era possível guiar à inglesa em território português.

"Então?", perguntou Mimicas, impaciente e cansada da longa viagem. "Que fazemos agora?"

José consultou uma carta do Ministério do Ultramar que trazia amarrotada no bolso.

"Não percebo", exclamou, desdobrando a missiva para consultar mais uma vez o conteúdo.

"Eles disseram que estariam aqui à nossa espera..."

Um automóvel negro, com a carroçaria coberta de lama e pó, em particular nas rodas e na parte baixa até aos faróis, emergiu da praça e estacionou diante da entrada da Capitania do Porto. Era um velho Studebaker.

A porta do carro abriu-se e do interior saiu um homem magro, de idade, bigode pontiagudo, chapéu branco e fato creme. O desconhecido olhou em redor, como se procurasse alguma coisa; viu o casal instalado por baixo da grande acácia e, vencendo uma ligeira vacilação, dirigiu-se aos dois em passo hesitante, apoiado numa bengala. Chegou ao pé do casal e tirou o chapéu num gesto de deferência.

"Doutor José Branco?"

O médico pôs-se em pé.

"Sim, sou eu."

O homem sorriu.

"Floriano Carvalho, director dos Serviços Provinciais de Saúde." Estendeu a mão ossuda. "Sejam bem-vindos!"

José e Mimicas cumprimentaram o recém-chegado, que fez sinal aos carregadores de que colocassem as malas na vasta bagageira do Studebaker. O casal acomodou-se no carro e Floriano instalou-se ao volante.

"Estava a ver que nos tinham abandonado", observou Mimicas. "Já andávamos até a pensar em coisar um táxi para nos levar para o coiso."

"Peço desculpa pelo meu atraso", disse o anfitrião, olhando pelo retrovisor para se assegurar de que o caminho estava livre. "Pensava que o paquete só chegava ao fim da tarde."

"Não faz mal", devolveu José, conciliador; afinal Floriano era o seu superior hierárquico.

"Vamos para longe*"

Floriano riu-se.

"Em Lourenço Marques é tudo perto." Ligou o motor e o carro arrancou. "Está a ver aquilo?"

Floriano apontou para as muralhas ao lado da Capitania do Porto. "É a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, o sítio onde há duzentos anos a cidade nasceu." O automóvel passou devagar ao longo da fortaleza, com os ocupantes a espreitarem as muralhas amarelo torradas, dispostas num quadrado baixo. "Foi durante muito tempo a única construção aqui existente."

"Nesta zona?"

"Não, em toda a cidade. No início Lourenço Marques cresceu muito devagar, sabe?" O carro acelerou e entrou no grande largo em estilo Belle Epoque que observaram da sombra da acácia. "Foi para aqui que a cidade começou a desenvolver-se, no século passado. No início chamava-se, creio eu, Praça da Picota e era o sítio onde a malta se juntava."

O Studebaker contornou a praça por completo e voltou ao ponto de partida para meter pela Rua Araújo em direcção à Praça Mac Mahon, num percurso paralelo à Alfândega e à ponte-cais Gorjão.

Os recém-chegados seguiam de olhos presos aos edifícios da rua apertada. Por toda a parte admiraram uma arquitectura tropical de encanto singular, com um toque exótico; eram sobretudo casas de alvenaria adornadas por varandas de madeira, muitas delas com comércio à porta. Em alguns casos havia cabarets de porta fechada, à espera da noite para se abrirem à clientela, mas viam-se também chalets e bungalows ajardinados.

A meio da pitoresca Rua Araújo, o automóvel negro abrandou e encostou ao passeio, estacionando junto a uma esquina. Logo apareceram, como se tivessem emergido do nada, dois grooms negros, fardados de dólmen branco com botões dourados e cofió vermelho na cabeça, que se acercaram do carro e abriram as portas.

"Chegámos?", perguntou José, abanando a cabeça com incredulidade.

O carro havia percorrido uma distância muito curta; entre a Capitania do Porto e aquele local não distavam mais de quatrocentos metros.

"Sim, é aqui", anunciou Floriano, apeando-se com esforço. Fez sinal a um dos grooms de que fosse buscar as malas à bagageira e mirou as instalações que dobravam toda a esquina. "É este o vosso hotel."

Tratava-se de um edifício longo, em forma de V; era de um branco entrecortado por madeira exótica nos pilares e nos varandins, com o telhado coberto de telhas cor de tijolo. Havia um piso térreo e um primeiro andar percorrido por uma longa varanda de madeira, onde se debruçavam alguns clientes e na base da qual se encostavam largos vasos com pequenas plantas tropicais. A porta principal situava-se no vértice do V, o topo a anunciar "Central Hotel".