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"Aqui é melhor vestir coisas leves", aconselhou. "São mais adequadas ao clima tropical do que o fato e gravata que se usa lá na Metrópole." Inclinou a cabeça, num aparte. "Se calhar até já têm camisas com a Taça dos Campeões Europeus cosida ao peito!..."

A visita à Casa Bem Fica serviu para desanuviar o ambiente. O nome da camisaria permitiu a José concentrar-se nas boas notícias, neste caso a vitória do seu clube, em detrimento das novidades sobre a nova guerra. Mas Angola permanecia presente num recanto da sua mente, e foi tanto assim que o tema voltou a aflorar no momento em que, após experimentar vários modelos de balalaica, se decidiu por um deles.

"O branco."

"Branco?", admirou-se Domingos. "Olha que o creme é mais usado. Se queres bizarrias, porque não pedes vermelho?", gracejou. "Sempre serve para comemorar a vitória!"

"Quero o branco."

"Mas porquê o branco?

"Condiz com o meu nome", explicou enquanto se mirava ao espelho. "Além do mais sou médico, não é verdade? O branco é sinónimo de paz e humanidade. É disso que precisamos."

José Branco decidiu-se pelo branco na Casa Bem Fica, uma decisão que reflectia o sentimento que se apossara dele. Que melhor cor poderia escolher no momento em que começava a guerra? De então em diante passou a vestir-se e calçar-se de branco, uma opção que personalizava tudo o que sentia, e foi assim que se apresentou uma hora mais tarde na casa de chá onde haviam combinado o reencontro com as mulheres.

Um burburinho morno enchia o Salão de Chá Veneza. A hora não era muito concorrida e havia inúmeras mesas vagas. As senhoras foram as primeiras a chegar e escolheram um lugar à janela.

Dali viram os maridos cruzar a porta e, com gestos frenéticos, fizeram-lhes sinal.

Foi um momento curioso porque José e Mimicas apareceram diferentes diante um do outro; ele todo de branco como uma pomba, ela sem os tradicionais óculos.

"Fico bem?", quis Mímicas saber, piscando os olhos de forma provocadora. "A Albertina levou-me ao Oculista Pilú e comprei estas lentes de contacto. Gostas?"

José Branco sorriu.

"Estás muito chic." Rodou o corpo para exibir os seus novos trajos. "E eu?"

Mimicas deteve-se a observá-lo dos pés à cabeça, apreciando-o com cuidado. Percebeu que a mudança do visual e a escolha do branco tinha um significado mais profundo do que podia parecer, sinalizando a entrada do marido numa nova fase da vida, mas mesmo assim não resistiu ao gracejo.

"Pareces uma freira de calças."Quando acompanhou a mãe ao Quintas & Irmão para espreitar os saldos, Diogo foi direito à secção dos brinquedos entreter- se com os carrinhos da Matchbox que tanto o fascinavam. Havia algum tempo que andava a namorar um Lotus negro em miniatura que se encontrava no topo da prateleira, inacessível como o tesouro mais precioso da loja, e dessa feita reuniu coragem e dirigiu-se ao empregado com a ideia de pedir para o ver. O funcionário atendia nesse momento uma cliente e o rapaz, educado e paciente, sentou-se aos pés da caixa a aguardar a sua vez, tornando-se assim ouvinte inadvertido da conversa.

a alojar muitos dos refugiados num prédio da Avenida de Lisboa, ao pé do Diário de Luanda, não sei se sabe onde é."

"Sei, pois claro que sei", retorquiu a cliente com grande convicção. "A escola primária do meu filho também já está transformada num albergue de refugiados, o que pensa você? E olhe que não é a única! A número sete encontra-se à pinha com gente acabada de chegar lá do Norte."

"Tem de ser", retorquiu o empregado com uma expressão resignada. "Já são mais de três mil refugiados, dona Aurora!Onde se vai pôr essa gente toda? As escolas e os sindicatos têm de se mobilizar, não há outro remédio!..."

"Os refugiados ainda é o menos, Nuno. Se fosse só isso, estávamos nós bem. Sabe o que verdadeiramente me apoquenta?" A cliente baixou a voz e tornou-se quase conspirativa. "Os mortos."

"Ah, pois..."

"Fala-se em quinhentos ou seiscentos. Um horror!"

"Isso são boatos, dona Aurora!", atalhou o empregado com um esgar céptico. "A boataria que por aí anda é infernal!"

"Mas os jornais dizem muito pouco! Imagine só as coisas que a censura não os deixa publicar...

Se não acreditarmos no que ouvimos os nossos amigos dizerem, acreditamos em quê? Acha que é mentira? Acha que não morreu ninguém?"

"Não, claro que morreu. Os próprios jornais confirmam que há mortes de fazendeiros. Sobre isso não há dúvidas."

"Mas não dão números", insistiu a cliente. "Não acha isso estranho? Sabe, a mim disseram-me que os mortos já iam em seiscentos. E olhe que..."

O empregado apercebeu-se nesse instante da presença de Diogo, que continuava sentado junto à caixa a aguardar vez.

"Chiu!", disse ele para a cliente, fazendo-lhe sinal na direcção da criança. Depois sorriu e inclinou-se para Diogo. "Olá, meu maroto. O que queres tu?"

O rapaz apontou para o carro da Matchbox guardado no alto da prateleira.

"O Lotus."

Diogo sentiu o ambiente febril e a comoção que envolvia os pais e a generalidade dos adultos, mas percebeu também que quando havia crianças em redor toda a gente se calava, como se houvesse uma conspiração para simular a normalidade. Todavia, não se deixou enganar. Havia ajuntamentos de pessoas por toda a parte e os rostos fechados indicavam que algo de grave se passava. Que diabo estariam os adultos a esconder?

O ambiente tornou-se de tal modo pesado que Diogo suspendeu a vida de brincadeiras e, inspirado no incidente ocorrido no Quintas & Irmão, tornou-se uma espécie de espião. Sempre que via adultos em conversas conspirativas aproximava-se deles e, fingindo-se distraído ou ocultando-se em qualquer canto, punha-se a escutá-los.

O diálogo mais revelador foi o que surpreendeu nodia a seguir às compras do Quintas & Irmão.

Estava Diogo à janela do quarto quando viu a mãe aparecer com a fruta que fora comprar às quitandas do bairro.

"Ó vizinha", chamou dona Olga no momento em que a surpreendeu prestes a entrar em casa. "Já viu o que aconteceu em Madimba?"

A mãe pediu-lhe um instante para ir a casa pôr as compras e Diogo aproveitou para agarrar num carrinho de bombeiros e sair disparado para ir brincar atrás de uma árvore mesmo ao lado da casa de dona Olga. Quando a mãe voltou para falar com a vizinha, o rapaz encontrava-se perfeitamente posicionado para escutar a conversa; aninhava-se ali próximo, mas permanecia invisível.

"Então, dona Olga?", quis saber a mãe. "Há novidades?"

"O meu marido foi à sede do Sindicato dos Motoristas ajudar a instalar umas famílias que vieram lá do Norte, de junto da fronteira com o Congo. Os pobrezitos sofreram um inferno. Os pretos mataram o administrador de Luvaca e a mulher e fizeram ainda pior em Madimba.

Apanharam o chefe do posto e mataram-no a ele, a quatro mulheres e a cinco crianças."

"Ai coitados, coitados!..."

"Veja lá! Isto está do pior!"

As duas suspiraram sucessivamente e gemeram de comiseração.

"O meu Quim chegou-me ontem a casa transtornado", disse a mãe. "Sabe, ele tem andado às voltas com os sobreviventes de Nambuca... Nambun..."

"Nambuangongo."

"Isso! Sabe que é a uns cento e cinquenta quilómetros daqui, não sabe?"

"Então não sei, dona Lourdes? Jesus! Desde que isto começou que tenho andado à roda do mapa a calcular a que distância estão eles de nós. Ando toda ralada com Quicabo, onde se fartaram de matar brancos. Olhe que Quicabo fica só a sessenta quilómetros de Luanda..."