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"Isto é um horror, um horror! Que vamos nós fazer se a coisa chegar cá?"

"Nossa Senhora há-de proteger-nos."

"Pois olhe que não protegeu estes desgraçados!..."

Mais vagidos de comiseração entre as duas. Diogo mantinha- se encostado ao tronco da árvore, o brinquedo na mão apenas como justificação de ali estar para o caso de a mãe o surpreender.

"Mas a senhora falava de Nambuangongo."

"Ah, sim", retomou Lourdes. "Dizia-lhe eu que o meu Quim tem andado num frenesim com os sobreviventes de Namban... Nanguan... ai!, com os sobreviventes desse sítio. Sabe quantos brancos mataram aí? Mais de trezentos!"

"Que horror!"

"E uma chacina!..."

"Olhe que Nambuangongo também fica aqui no distrito de Luanda..."

"A quem o diz!"

Dona Olga fez um estalido com a língua.

"O meu marido contou-me que já contabilizaram uns trezentos brancos mortos à catanada nas fazendas entre o Dange e Quitexe. Parece que os pretos até retalham as crianças aos bocados!"

"Ai, não me conte isso que fico doente! Fico doente!"

"E eu? Nem durmo só a pensar na mesma coisa."

"Quando me falam das crianças penso logo nas minhas."

"Ah, pois é! Isto é terrível!", exclamou dona Olga, mudando de seguida o tom de voz. "Oiça lá, não quer tomar um chazinho?"

"Ai não. Tenho a minha Gracinha à espera. Daqui a pouco precisa do biberão."

"Quando é que tem de lhe dar o biberão?"

"Daqui por meia hora."

"Então ande daí, venha tomar um chazinho. São só dez minutinhos e vai ver que se sente mais revigorada."

A mãe fez uma pausa para considerar a sugestão.

"Dez minutinhos? Está bem."

"Ora venha. Sabe que o meu marido me disse..."

As duas vozes afastaram-se e emudeceram logo que a porta se fechou. Diogo levantou-se com o carrinho de bombeiros na mão e, apesar do terror que quase o paralisava, voltou em corrida para casa.

Duas noites mais tarde o pai chegou do quartel com um homem que nunca ninguém vira. Era um civil baixo e calvo no topo da cabeça, com o cabelo negro e oleoso atrás das orelhas e penteado para cima, num esforço vão de ocultar a careca; mas o que nele mais se destacava eram as grandes olheiras que lhe escureciam o olhar.

"Lourdes, trouxe o senhor Lopes para jantar", anunciou o capitão Meireles. "Põe os miúdos a comer na cozinha."

"Na cozinha?", admirou-se a mãe. "Homessa! Porque não hão-de os garotos comer connosco?"

"O senhor Lopes veio dos Dembos."

A informação deixou a mãe embatucada. Estudou o convidado dos pés à cabeça, como se o reavaliasse. Depois de o cumprimentar com especial deferência, voltou-se para os filhos e bateu as palmas.

"Ala! Tudo para a cozinha!"

Diogo e os três irmãos foram comer para a copa, enquanto o pai se instalava com o convidado na sala. Logo que despachou os filhos, Lourdes verificou se a bebé dormia, levou a comida para a sala de jantar e fechou a porta.

O tom conspirativo do procedimento não passou despercebido entre os irmãos. Diogo trocou olhares com Manei e Mimi e, com súbita resolução, foi buscar o seu carrinho de bombeiros para ir brincar para o corredor, mesmo aos pés da porta da sala de jantar.

"O que estás a fazer?", quis saber Manei.

Diogo encostou o indicador aos lábios.

"Chiu!"

Encostou a cabeça à base da porta e ali ficou, atento à conversa que decorria à mesa. As frases nem sempre eram integralmente perceptíveis, mas uma ou outra palavra que falhava não impedia que captasse o sentido das frases.

"... primeira coisa estranha foi acordar com o gerente de uma fazenda às seis da manhã", dizia uma voz do outro lado da porta, decerto o convidado. "Pensei: mas que raio me quer o homem? O

tipo vinha preocupado. Disse-me que na véspera lhe tinham desaparecido mais de cem homens da propriedade, a fazenda Zalala, e que achava os restantes muito agitados."

"Agitados como?", interrompeu o pai.

"Sei lá, nervosos... O homem parecia preocupado com a maneira como os trabalhadores falavam com ele e como o olhavam."

"Hmm... e então?"

"Bem, o gerente lá regressou à fazenda e eu fiquei a matutar com os meus botões: querem lá ver que há chatice? Decidi percorrer as roças da região. Vesti-me, deixei a minha mulher e os meus filhos a dormir e meti-me no carro. Andei por ali fora e pareceu-me tudo em ordem. A certa altura, quando já me preparava para voltar ao Quitexe, lembrei-me de uma demarcação que tinha sido feita há pouco tempo para uma nova plantação de café. Aquilo era recente e ainda estive vai não vai para não ir. Mas o terreno ficava ali perto e decidi espreitar a coisa. Quando lá cheguei pareceu-me tudo tranquilo. Buzinei para chamar o proprietário, mas ninguém apareceu. Se fosse de manhã cedo, enfim, ainda podia admitir que o homem estivesse a dormir, mas por aquela altura já era final da manhã, por isso não me pareceu normal ninguém responder. Saí do carro e fui até à casa. O

que vi logo à minha frente? Um corpo deitado no chão no meio de um charco de sangue.

Aproximei-me e percebi que era o fazendeiro, que tinha sido morto à catanada. Peguei logo na pistola e, a tremer, fui inspeccionar o resto da casa. Dei com um preto igualmente morto à catanada; era o empregado. Mais à frente estava a mulher do proprietário, coitada, também morta da mesma maneira."

"E as crianças?"

"Felizmente não tinham filhos. Saí dali a correr e fui em todas as fazendas a alertar para a situação. A certa altura cruzei-me na estrada com um grupo de brancos que reconheci; era pessoal do Quitexe. Onde vai?, perguntaram-me. Ora, vou regressar ao Quitexe. Não vá!, disseram-me; não há ninguém vivo. O quê, não há ninguém vivo?!, admirei-me. Os pretos mataram toda a gente.

Senti o coração dar um salto. O quê? Mataram tudo, responderam-me. E a minha mulher? E os meus filhos? Não há ninguém vivo, repetiram. A minha família também? Alguém viu a minha mulher e os meus filhos mortos? Ninguém sabia, tinha tudo fugido à pressa."

"Ai que horror!", murmurou a mãe. "Que horror, que horror!"

"Fiquei transtornado, como devem calcular. O que ia eu fazer? Devia ir ao Quitexe e arriscar-me a ser morto? Devia ficar numa fazenda e ignorar o que acontecera à minha família? Foi a desorientação total, não podem imaginar."

"Imagino, imagino", disse o pai. "O que decidiu fazer?"

"Percebi que teria de arriscar. Trazia uma pistola comigo e precisava de saber o que sucedera à minha mulher e aos meus filhos. De modo que lá me meti pela estrada, a tremer de medo e a chorar por eles."

"Coitado..."

"Quando cheguei ao Quitexe parecia que tinha entrado no inferno. Havia corpos espalhados pelas ruas, tudo morto à catanada. Até o coração se me apertou. Nem parei e fui directo a casa, prevendo o pior. Entrei a medo, apavorado com o que poderia encontrar, mas descobri-a vazia.

Não havia vivalma nem, felizmente, nenhum cadáver. Fui ter com o aspirante administrativo que normalmente me ajuda no posto e dei com o corpo dele no quarto de banho. Um outro auxiliar estava morto no posto. Sabe como? Agarrado ao emissor de rádio! Aquilo era dantesco, vocês não podem imaginar. Pus-me a esquadrinhar o Quitexe, mas não encontrei a minha família. Depois lembrei-me de ir a casa do meu criado. Meti pela sanzala e fui dar à palhota. Entrei sem avisar e o que vejo eu? A minha mulher e os meus filhos! Oh, foi uma alegria que não se descreve! Tinham sido salvos pelo criado, o João, que Deus o abençoe."

A mãe soltou uma gargalhada nervosa.

"Ai que alívio!", exclamou. "Estava a ver que isso acabava mal."

"Felizmente que não, no nosso caso. Mas noutras situações foi diferente, sabe? Houve casos em que foram os próprios criados a degolar os patrões. Alguns tinham anos de casa!"