"Que horror!", exclamou a mãe. "E a sua família? Onde está ela?"
"Meti toda a gente esta tarde no Super Constellation. A esta hora estão a voar para a Metrópole, graças a Deus. Depois de arrumar as nossas coisas, também vou. Isto está que não se pode."
Fez-se um silêncio pesado à mesa e, ainda encostado à porta, Diogo ouviu um súbito tilintar de pratos, como se alguém chamasse a atenção para a comida de modo a aligeirar o ambiente.
"Ora coma, coma! Quer a perna ou o peito?"
"O peito", retorquiu o convidado. "Não tem jindungo?"
"Está na cozinha. Vai uma pitada?"
"Agradecia."
O rapaz escutou uma cadeira a arrastar e não esperou mais; levantou-se apressadamente e foi para a outra ponta do corredor. A porta da sala de jantar abriu-se e apareceu a mãe, que ao vê-lo ali lhe atirou de imediato um olhar desconfiado.
"O que estás a fazer aqui no corredor?"
Diogo assumiu o ar mais casual que conseguiu.
"A brincar."
A mãe fitou-o com uma expressão severa.
"Vai brincar para o quarto", ordenou, apontando para a porta. "Andor! Fora daqui!"
O filho levantou-se, contrariado, e arrastou-se cabisbaixo com o carrinho dos bombeiros na mão.
Abriu a porta do quarto e viu os irmãos, que se viraram para ele e lhe lançaram um olhar expectante, como quem pede novidades.
Diogo levava muito que contar.A convocatória surgiu na segunda semana, quando um paquete bateu à porta do quarto dos Branco no Hotel Central de Lourenço Marques e entregou a José um envelope remetido pelos Serviços Provinciais de Saúde. Depois de depositar uma gorjeta na mão do rapaz, o hóspede abriu o sobrescrito e constatou que se tratava de uma convocatória do director, Floriano Carvalho, para uma reunião nesse mesmo dia às três da tarde.
Almoçou com a mulher na cervejaria Piripiri e, à hora combinada, o médico apresentou-se na morada da Pinheiro Chagas à qual havia sido chamado. Tratava-se de uma elegante vivenda de traça colonial oitocentista, com um belo jardim à volta e o primeiro andar rodeado por uma vasta varanda, à maneira antiga.
"Oh, caro doutor Branco", saudou Floriano quando o foi receber às escadas. Levou-o para o gabinete e indicou uma cadeira diante da sua secretária. "Faça o favor."
O médico sentou-se e contemplou a sala. Era larga e estava toda revestida a madeira, com um enorme relógio e fotografiasemolduradas a ornar as paredes, incluindo uma grande imagem de Salazar atrás da secretária do director.
"Que belo gabinete."
O olhar de Floriano incendiou-se de entusiasmo.
"É, não é?" Apontou para um caixilho na parede. "Está a ver esta fotografia?"
José Branco pousou o olhar na imagem encaixilhada, enquadrando um retrato a preto-e-branco de uma moradia com o espaço vazio à volta; evidentemente um clichet antigo do edifício onde se encontravam.
"É esta casa?"
"Essa fotografia foi tirada em 1914", indicou com um sorriso embevecido. "Trata-se de um dos edifícios mais antigos de Lourenço Marques, construído para ser a residência do director do Hospital Miguel Bombarda. E para que veja como é distinta esta moradia!"
Os olhos do convidado desviaram-se do retrato para as amplas janelas da sala.
"Uma casa cheia de charme, sem dúvida."
O sol jorrava pelos vidros, formando um rectângulo iluminado no soalho de madeira exótica. O
pó cintilava no ar, como se milhares de pirilampos minúsculos esvoaçassem diante da luz, e um móvel de madeira rangeu, parecia que protestava contra o calor.
Fez-se um silêncio desconfortável, quebrado pelo pigarrear forçado de Floriano a assinalar a entrada no assunto que o levara a convocar o médico para aquela reunião.
"Já tenho aqui a sua guia de marcha", disse, exibindo um envelope com o carimbo dos Serviços Provinciais de Saúde. "Mas antes de lha entregar gostaria de ter consigo a conversa que tenho habitualmente com todos os médicos que aqui recebo antes de os enviar para os seus postos."
"Vai-me alertar para as especificidades das patologias africanas?", perguntou José. "Não precisa.
Ao contrário de muitos colegas que por aí andam, eu tirei Medicina Tropical em Lisboa antes de vir para aqui. Sei muito bem o que me espera."
Os dedos de Floriano tamborilaram distraidamente na mesa.
"Ainda bem!", exclamou o director. "Mas, independentemente disso, queria fazer-lhe uma pergunta. O senhor sabe o que estamos a tentar fazer nesta terra?"
José estranhou a pergunta e ficou incerto sobre o seu sentido.
"Bem, acho que estamos a tentar tratar das populações..."
Floriano ignorou a réplica do médico, evidentemente fora do alvo, e respondeu a si próprio.
"Uma coisa grandiosa." Levantou-se e dirigiu-se à janela voltada para a avenida. "Olhe lá para fora, doutor. Olhe bem." Fez uma pausa, exibindo a paisagem com um gesto grandiloqüente. "O
que vê o senhor?"
José esticou o pescoço.
"Vejo carros a passar na avenida, pessoas a circular pelos passeios e prédios por toda a parte.
Porquê?"
"Há menos de duzentos anos, Lourenço Marques não passava de uma fortaleza, justamente aquela que vos mostrei quando vocês chegaram, e uma casa de madeira construída ao lado. Além das palhotas, claro. Mais nada."
"Há quanto tempo foi isso?"
"No século xviii, meu caro amigo."
"Mas os Portugueses não chegaram a Moçambique em 1498?"
"Sim, é verdade, foi Vasco da Gama o primeiro branco a pôr o pé nesta terra. Mas isto ficou tudo negligenciado, meu caro. Ninguém queria saber de nada, havia outras prioridades. Os únicos que se interessaram foram alguns mercadores portugueses que, enquanto as caravelas seguiam para a índia, exploraram a costa de Moçambique, atraídos pela lenda do Monomotapa. Dizia-se que havia por aí grandes minas de ouro."
"Como as do rei Salomão?"
"Mais ou menos. Instalaram-se então feitorias em Sofala e na Ilha de Moçambique, mas o resto era paisagem. Durante quatro séculos, a influência portuguesa por estas paragens ficou ao sabor das nossas cíclicas expansões e retracções e do comércio dos escravos, do ferro e do ouro. Até cerca de 1890, Moçambique não era bem um território português, mas um pedaço de terra entregue a intermináveis disputas tribais, com os caciques e os mazungos a guerrearem-se uns aos outros, aliando-se alternadamente aos Portugueses e aos maometanos. Só nominalmente é que isto dependia da coroa portuguesa." Abriu a janela e deixou o ar quente da rua invadir o gabinete. "A coisa estava de tal modo ao deus-dará que os primeiros europeus a instalarem-se neste sítio, onde é agora Lourenço Marques, não foram os Portugueses, mas os Holandeses. Depois vieram os Ingleses e até uma empresa austríaca, veja lá!"
"Mas nós não andávamos por aqui?"
"Por Moçambique?"
"Não, não." Apontou para o chão. "Aqui na zona de Lourenço Marques."
Floriano indicou com a cabeça um ponto indefinido para lá de uma janela.
"Instalámos um entreposto ali na ilha da Inhaca, do outro lado da baía, para o comércio do marfim. Mas só viemos aqui para Lourenço Marques em 1781, quando o pessoal da Inhaca atravessou a baía e se pôs a construir a fortaleza. A coisa manteve-se pequena ao longo de todo o século xix, mas a descoberta de ouro e diamantes no Transvaal criou a necessidade de se abrir um porto para escoar esses minerais preciosos. Ora o melhor porto do Sudeste africano é o de Lourenço Marques, toda a gente sabe. Está protegido pela baía e dispõe de águas profundas. De modo que se começou a investir por aqui. A linha férrea, essencial para ligar o Transvaal à costa, ficou entretanto concluída e então, aí sim!, Lourenço Marques começou a crescer a sério." Fez um gesto largo com as mãos, afastando-as como se houvesse um objecto a dilatar no meio. "A cidade cresceu tanto, em dimensão e importância, que, em apenas quatro anos, retirou à Ilha de Moçambique o estatuto de capital da colónia. Pode dizer-se que Lourenço Marques é praticamente uma criação do século xx.