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Tudo o que havia antes por aqui era risível, insignificante."

"Mas já havia Moçambique..."

"Não, não havia. Existiam umas territas mais ou menos administradas por nós, só isso. Muitas partes do território permaneceram nas mãos dos selvagens até 1914, altura em que, então sim, a colónia adquiriu as suas fronteiras definitivas. Mas só eram fronteiras no papel, como deve calcular, porque Portugal não fazia ocupação efectiva. O problema é que os Ingleses e os Alemães começaram a ficar com vontade de nos abocanhar e, como não tinha dinheiro nem gente para ocupar a terra, a coroa voltou-se para empresas privadas estrangeiras e entregou-lhes por cinquenta anos o monopólio da exploração de dois terços do território, a troco de 7,5 por cento dos lucros. Está a ver o negócio?"

"Portanto, alugámos a colónia aos estrangeiros."

"Isso. Criaram-se assim três companhias: a do Niassa, a da Zambézia e a de Moçambique. A contrapartida dada por Portugal foi assegurar o controlo efectivo do território, o que obrigou a desencadear várias campanhas militares, como as de Mouzinho de Albuquerque, que levaram à captura dos reis locais, como o Gungunhana."

José Branco passou as mãos pelo cabelo e fitou o superior hierárquico com uma expressão intrigada.

"Tudo isso é realmente muito interessante", disse da forma mais convicta que conseguiu. "Mas confesso que não vejo bem a relação desse assunto com o meu trabalho..."

O director respirou pesadamente.

"O que estou a tentar explicar-lhe, caro doutor, é que isto era tudo muito negligenciado. Os idiotas da monarquia, e depois os parvalhões da República, estavam demasiado envolvidos nas suas trapalhadas para prestarem a devida atenção às colónias. Os republicanos ficaram todos enxofrados com o ultimato inglês, mas, enquanto governaram, esses fala-barato também nada fizeram." Floriano abandonou a janela e voltou a sentar-se no seu lugar. "Sabe quem é que mudou isto?"

A pergunta suscitou um arquear de sobrancelhas de José; a resposta era previsível.

"O novo regime?"

O olhar do seu superior hierárquico desviou-se para o retrato pregado na parede atrás da secretária.

"Salazar."

Numa reacção quase reflexa, o médico fitou também a figura esfíngica do presidente do Conselho, imobilizada naquela moldura.

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"Ah."

Floriano deu uns passos e estacou diante do retrato.

"Salazar foi o primeiro homem a formular uma estratégia coerente para o império. A ideia que ele apresentou, e que estamos a pôr em prática, é fazer com que as províncias ultramarinas sejam auto-suficientes, com a indústria concentrada na Metrópole e a agricultura e as matérias-primas nas colónias. Salazar acabou com as concessões privadas aos estrangeiros e instituiu uma administração central forte. Investiu no algodão e no arroz, e a verdade é que as exportações aqui da província aumentaram mais de quinhentos por cento." Fez uma pausa, para deixar o número assentar.

"Quinhentos por cento. Imagina o que isso é?"

"É muito."

"E a diferença entre o nada e o tudo, meu caro. Entre a inexistência e a existência." O director puxou a cadeira e reinstalou-se no seu lugar à secretária. "Mas não ficámos por aqui. O estado está a investir na industrialização, que se centra nesta zona de Lourenço Marques, e também no turismo. A ideia é atrair os bifes que vivem na Rodésia e na África do Sul, para ver se eles vêm cá gastar os seus rands." Apontou o dedo ao subordinado. "E é aqui que você entra."

O médico arregalou os olhos.

"Eu?"

"Sim. Você, eu, todos os colonos que aqui estão. E que, para marcar Moçambique no mapa, o país necessita de quadros qualificados. Temos poucos, como sabe, até porque a Metrópole não Pode enviar toda a gente habilitada que para lá anda, se não fica ela sem ninguém. Somos por isso poucos, mas precisamos de dar o melhor uso a cada um." Apontou para o subordinado. "Você é um desses poucos. A pátria exige que dê o seu melhor, apesar das condições adversas que cá existem.

A terra é dura, mas as pessoas que vêm para o Ultramar são gente que ergue, que constrói, que abraça o trabalho, que faz das fraquezas forças e transforma o pó em ouro. Para trás fica o Portugal derrotista, preguiçoso e maledicente, das críticas e das invejas, dos que falam e nada fazem. Aqui é o Portugal optimista, trabalhador e construtivo, solidário e positivo, dos que fazem mais do que falam. Estamos numa terra imensa, onde está tudo por fazer, e gostaria que tivesse isso sempre presente quando começar a desempenhar as suas novas funções." Ergueu o dedo. "Quem vem para África vem em missão!"

"Com certeza", assentiu o médico. "Vim cá para trabalhar e sei muito bem que está quase tudo por fazer. Mas confesso que a sua conversa me está a assustar um bocado. Em que diabo de buraco me querem vocês meter?"

Floriano esboçou um sorriso e levantou-se de novo, desta feita para se abeirar de um mapa de Moçambique que se encontrava assente numa estrutura de madeira ao lado da secretária.

"Esteja tranquilo que é um sítio agradável", prometeu, pousando o indicador num ponto do mapa. "Aqui."

José Branco aproximou-se e fixou os olhos no local indicado. Tratava-se de uma cidade situada relativamente perto de Lourenço Marques, apenas alguns quilómetros a norte da capital provincial.

"Xai-Xai?"

O director pegou no envelope com a guia de marcha.

"Esse mapa é antigo", disse, entregando-lhe o sobrescrito. "Agora chama-se João Belo."

O subordinado mantinha a atenção colada àquele ponto do mapa.

"É este o buraco para onde vamos ser desterrados?"

"Qual buraco, doutor? João Belo é uma linda cidade!" Inclinou a cabeça. "Com a vantagem acrescida de não ser muito longe daqui. Temos lá trabalho para si e para a sua mulher. Se precisar de alguma coisa, estarei aqui às suas ordens." Estendeu- lhe o braço, dando a reunião por terminada. "Boa sorte!"

Apertaram as mãos e Floriano acompanhou o médico até à porta do gabinete. Despediram-se mais uma vez e José virou as costas para descer as escadas.

"Doutor Branco?"

Ia já a meio da escadaria quando se deteve e olhou para trás. O superior hierárquico permanecia plantado à porta do gabinete.

"Sim?"

"Tenha cuidado com as más companhias, ouviu?"

Acto contínuo, e sem esperar pela réplica, Floriano fechou a porta e deixou José Branco ancorado entre dois degraus, intrigado com o conselho, a tentar compreender o seu real alcance.Um silvo ondulante soou pelo altifalante do rádio como um assobio desafinado. O capitão Meireles rodou o manípulo, procurando sintonizar a frequência certa. Do éter irrompeu uma voz e o capitão ficou atento por um instante, tentando perceber se havia encontrado o que queria.

"... mais le président De Gaulle, après avoir reçu le premier- ministre Debré, a déclaré que la situation en Algérie est..."

Uma emissora francesa.

"Bardamerda!", vociferou, frustrado.

Mudou imediatamente de frequência e os silvos voltaram. Captou música e parou. Era uma qualquer canção em árabe. Rodou de novo o manípulo, mas, enervado com a minúcia do processo, foi rápido de mais e saltou uma mão-cheia de emissoras.

A mulher, distraída a fazer malhas, ergueu o sobrolho.