"Ó Quim, não é assim", disse, guardando as lãs e aproximando-se do rádio. "Lá em minha casa habituei-me a ver o meu pai procurar a BBC. Isto de sintonizar uma estação de onda curta tem a sua técnica."Lourdes girou o manípulo e, em apenas alguns segundos, todos na sala ouviram uma voz familiar emudecer os zunidos da estática.
"... aos microfones da Emissora Nacional, a emitir em onda curta pelas frequências de..."
Lançou um olhar triunfal na direcção do marido.
"Estás a ver, Quim? Com calma tudo se faz."
Os sons da rádio portuguesa impuseram o silêncio em toda a casa. Diogo consultava a página desportiva de A Província de Angola em busca de novidades sobre as corridas de automóveis que tanto o apaixonavam, mas deixou igualmente a atenção desviar-se para as ondas curtas.
Passados alguns minutos soou o sinal horário a assinalar as nove da noite e começou o noticiário. A Emissora Nacional dava notícias sobre a substituição das chefias militares na sequência de uma intentona contra o governo chefiada pelo general Botelho Moniz e, nas palavras do locutor, " prontamente neutralizada pela imediata intervenção das forças da ordem".
A revelação provocou espanto na sala, mas ninguém articulou qualquer observação com medo de perder uma palavra que fosse do noticiário.
"Na sequência destes graves acontecimentos" , acrescentou o locutor, "o senhor presidente do Conselho assumiu ele mesmo a pasta da Defesa. No seu gabinete de trabalho, o professor António de Oliveira Salazar gentilmente acedeu a explicar aos nossos microfones os motivos que o levaram a tomar esta decisão."
Ouviu-se a seguir uma voz esganiçada e sibilante que todos de imediato reconheceram como do chefe de governo.
"Se é preciso uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do governo, a explicação pode concretizar-se numa palavra, e essa é: «Angola»", disse a voz familiar. "Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr a prova a nossa capacidade de decisão."
A declaração foi recebida aos urros na sala de jantar. O capitão Meireles esmurrou o ar com o mesmo vigor com que celebrava os golos do seu FC Porto, no que foi acompanhado pela família.
"Até que enfim!", exclamou a mulher, abrindo-se num imenso sorriso. "Irra! Estava a ver que não!..."
O marido dava saltinhos na sala, agarrando em Diogo e em Mimi e dançando com eles. Incapaz de se conter, abriu a janela e gritou para quem o quisesse ouvir.
"Para Angola, e em força!"
O sol abrasava a pele, apesar da brisa salgada que soprava suave do mar. A multidão comprimia-se em ambos os lados da grande Avenida Paulo Dias de Novais, enchendo os passeios como se fosse uma guarda de honra à magnífica marginal de Luanda. As varandas dos edifícios estavam apinhadas de gente e das janelas pendiam enormes colgaduras; vendiam- se pipocas e gelados e viam-se guarda-sóis coloridos a abrigar a massa humana. O ar trepidava de excitação e cada mirone se esforçava por defender o palmo de passeio que ocupara de modo a garantir o melhor lugar para observar o grande acontecimento.
"O Quim", disse Lourdes naquele aperto, varrendo a multidão com o olhar. "Quantas pessoas achas que estarão aqui?"
"Sei lá... umas trinta ou quarenta mil. Eles até fecharam o comércio para permitir que os empregados viessem!..."
Com a bandeirinha portuguesa a tremelicar na mão, Diogo não era dos mais excitados.
Sentindo-se cansado com a espera prolongada, o rapaz depressa se desinteressou da marginal, cujo asfalto permanecia estranhamente vazio, e preferiu sentar-se à sombra da fila de palmeiras e estudar o grande navio que atracara logo pela manhã na cidade. Pôs a palma da mão sobre a testa, como se fosse a pala de um boné, e protegeu os olhos para melhor ler a palavra pintada no casco do navio.
"Ni... a... ssa", soletrou. "Niassa."
Voltou a cabeça e viu os pais e os irmãos apertados entre a multidão, mantendo-se firmes no pedaço de passeio que haviam ocupado duas horas antes. Admirou a resistência deles, mas não os conseguia acompanhar, doíam-lhe já as pernas.
ó ministro! ministro!"
O alerta dado por um mirone desencadeou um burburinho na multidão. Com a curiosidade atiçada, Diogo levantou-se e furou pela massa de gente até chegar de novo junto dos pais.
Espreitou a estrada. O alcatrão da marginal encontrava-se ainda vazio e o espectáculo permanecia nos passeios, onde a mole humana se agitava com os olhos voltados na direcção do porto. Esticou o pescoço e espreitou naquele sentido, tentando destrinçar a fonte do burburinho.
Pela direcção dos olhares da multidão, percebeu que todos fitavam o edifício do Automóvel e Touring Clube de Angola. A descoberta surpreendeu-o, uma vez que aquele local o fascinava; era ali que se organizavam as emocionantes corridas do Circuito da Fortaleza e o aventuroso Rallye Automóvel Leo- poldville-Luanda.
Mas as emoções nesse momento pareciam-lhe outras. A varanda do clube estava transformada numa tribuna, com o tal ministro do Tramar no meio. Chiça, que raio de nome tinham posto ao homem! Ministro do Tramar!? Parecia ser gente importante, o que não admirava; um ministro que pelos vistos tanto gostava de tramar os outros era de certeza temível. Aliás, já lá em casa o pai tinha-lhe grande respeito e chamava ao sujeito, Adriano qualquer coisa, "o ministro sem medo".
O toque de uma corneta interrompeu as divagações do rapaz, cujo olhar passeava pela varanda do Touring Clube. Logo a seguir o ar tremeu com o súbito rufar simultâneo de tambores.
"Eles vêm aí!"
A multidão agitou-se, despertando do torpor, e as pessoas adiantaram-se um passo, procurando a melhor posição.
"Viva a tropa!", gritou alguém. "Viva Portugal!"
O berro foi acompanhado de vivas sucessivos e o ambiente incendiou-se. Quem tinha uma bandeira na mão içou-a bem alto, gesto que Diogo imitou, e quem não conseguia um lugar na primeira fila punha-se atrás em bicos de pés, esforçando-se por ver acima do mar de cabeças.
"Ó p'ra eles! Ó p'ra eles!"
O desfile foi aberto por cinco jipes da Polícia Militar, secundados com estrondo pela banda do Comando Militar de Angola. Os primeiros soldados acabados de desembarcar apareceram em formação logo a seguir, marchando com passadas marciais, sincronizadas e ao ritmo da banda, as armas a tiracolo, as botas engraxadas a rigor.
Aquela visão ateou uma corrente eléctrica entre a multidão, que se pôs a ovacionar os recém-chegados. Soaram palmas espontâneas, tão ruidosas que por momentos abafaram a marcha solene das cornetas e dos tambores e das botas militares a bater no alcatrão em uníssono; os mirones gritaram, deram sucessivos vivas aos soldados, a Salazar e a Portugal. Foi um bruá imenso. O céu encheu-se de serpentinas, de flores e de confetti lançados dos prédios como chuva colorida, os soldados sorriram e acenaram de volta, e a multidão pôs-se a entoar A Portuguesa com ardente patriotismo. Algumas mulheres recorriam aos lenços para molhar a emoção e havia homens que saltitavam como crianças; olhavam para os soldados e viam a redenção.
Embasbacado diante da cena, talvez até mais impressionado com a reacção apoteótica da multidão do que com a própria tropa em desfile, Diogo agitou freneticamente a bandeira o mais alto que pôde e, embalado pela emoção, ergueu os olhos para o céu e murmurou uma jura sentida e solene.