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"Quando for grande, Deus, faz-me soldado de Portugal!"O Limpopo dobrava-se como uma jibóia, roçando pelo casario na sua curva apertada, manso e majestoso; o Sol despontava na planície e o pipilar solitário de um pássaro ecoava pelo espelho de água. A paisagem respirava tal majestade que o casal Branco apenas se atrevia a sussurrar durante o pequeno -almoço, como se receasse que as vozes perturbassem a natureza. Estavam a comer no quintal de casa, protegidos pela sombra de um limoeiro e ambos virados para o rio. Das águas dóceis sentiram subir uma brisa ainda fresca; não era de admirar, considerando a hora matinal.

Foi quase com pena que concluíram a refeição. Depois de Mímicas dar as últimas instruções ao criado, os dois pegaram nas suas coisas e abriram a porta de casa. A manhã despontara tranquila e João Belo parecia ainda meio adormecida. Um jipe passou com estrépito na rua de terra batida, levantando uma nuvem de poeira avermelhada, mas o movimento limitava-se no essencial a algumas pessoas que circulavam despreocupadamente pelos passeios.

Quando teve a certeza de que a nuvem não os atingiria, José saiu para a rua e passou o dedo pelo

capot do Opel paradodiante da casa, de modo a avaliar a quantidade de pó que sobre o automóvel se abatera durante a noite. Era uma bela viatura branca com tejadilho azul-turquesa, que ele, inexperiente ao volante e pouco familiarizado com a condução à esquerda praticada em Moçambique, logo no primeiro dia amolgara ao tentar estacioná-la.

"Não queres levar o coiso?", perguntou a mulher numa referência ao carro.

"Fico intimidado quando ando na bomba da senhora directora da farmácia", gracejou José, inclinando-se para lhe dar um beijo. "Até logo, senhora directora."

Mimicas corou e riu-se.

"Parvo!"

Os dois separaram-se, ele rua acima a pé para o hospital, ela dando meia volta e regressando a casa. Havia já três anos que era aquela a sua rotina matinal em João Belo. Devido à falta de quadros, Mimicas fora nomeada directora da farmácia do Estado, cargo que ocupava apesar de ser recém-formada e que lhe dava direito a casa. Na verdade não era uma casa, mas um conjunto de edifícios: a residência, um posto médico e a farmácia do Estado, os três blocos unidos por uma vasta varanda.

Não era comum a mulher ocupar uma posição hierárquica superior à do marido, facto que atraíra já alguns gracejos na boa sociedade de João Belo, mas José sempre levara a coisa na galhofa.

Referia-se à mulher em público como "a senhora directora" e desse modo contornava a ideia prevalecente entre os seus contemporâneos de que o homem está sempre acima da mulher.

Formavam assim um casal suigéneris: ela era directora da farmácia, ele distinguia-se por andar sempre impecavelmente de branco, como se tornara seu costume desde que chegara a Moçambique.

Foi aliás nas suas tradicionais vestes brancas que nessa manhã seguiu para o trabalho, a mala a balouçar na mão e o olhar atento ao trânsito. Sempre que um automóvel passava pela rua tinha o cuidado de se desviar do inevitável bafo poeirento; vestir de branco obrigava-o a cuidados redobrados, sob pena de ter de ir ao roupeiro buscar as balalaicas de reserva.

Chegou ao hospital à hora habitual, faltavam dez minutos para as sete da manhã.

Cumprimentou o enfermeiro Nélson, um tsonga que tirara o curso de Enfermagem em Lourenço Marques, e recolheu ao seu gabinete para se preparar. Vestiu a bata que estava pendurada no cabide e abriu a malinha, extraindo o estetoscópio e pondo-o ao peito. Cruzou a porta e fez sinal ao enfermeiro que o aguardava como uma sentinela.

"Vamos?"

Nélson hesitou.

"Doutor, o senhor director já cá está."

José fez uma careta surpreendida e consultou o relógio, querendo certificar-se de que não se enganara. Os ponteiros confirmavam que eram quase sete da manhã.

"A esta hora?"

O enfermeiro não respondeu e acompanhou o médico até à enfermaria. José foi ter com cada um dos pacientes e interrogou- os sobre a noite, auscultando-os e medindo-lhes a temperatura. Havia um caso de paludismo cerebral que o mantinha preocupado, tendo gasto mais tempo com esse paciente. Sempre que tinha dúvidas questionava Nélson, que havia passado a noite no hospital e o esclarecia de pronto, e assim cumpriu os seus deveres na enfermaria.

As consultas começavam às oito e, quando a hora chegou, apressou-se a caminhar para o gabinete. Apercebeu-se nessa altura de um vulto a esgueirar-se por detrás de uma cortina que separava os doentes e franziu o sobrolho, mas depressa reconheceu a figura furtiva; era o director.

"Bom dia, doutor Abreu!", cumprimentou, intrigado. "Por aqui a esta hora? Caiu da cama ou quê?"

A silhueta permaneceu um instante imóvel, como se não esperasse ser identificada, mas logo deu um passo para o lado, talvez percebendo que era inútil permanecer escondida.

"Hmpf!", grunhiu o director com ar irritado, dando uma resposta incompreensível.

José Branco riu-se para dentro e abanou a cabeça, sem entender aquele comportamento; era mais uma parvoíce do director, pensou. Retomou caminho, apressado; gostava de cumprir horários e via já uma fila de pessoas na salinha contígua à sua porta. Cumprimentou-as com um "bom dia"

geral e meteu-se no gabinete, fazendo sinal ao enfermeiro.

"Chame o primeiro."

O primeiro paciente foi, na verdade, um par. Tratava-se de um padre que acompanhava uma freira com um problema bizarro: tinha o ventre dilatado. O médico mandou a freira deitar-se na marquesa, apalpou-lhe a protuberância e auscultou-a com atenção.

"Serão gases, doutor? Nós comemos muitos feijões lá na missão..."

As palavras do pároco foram pronunciadas com uma voz sibilante, à maneira dos beirões, e José levou alguns instantes a responder.

"Não."

"Ai, meu Deus!", ciciou o homem, passando as mãos pela cara com evidente aflição. "E um cancro? Será um cancro? Um linfoma? Um carcinoma?"

Disse-o com expectativa, quase com esperança, o que suscitou a estranheza do médico.

Terminado o exame, José recolheu o estetoscópio e regressou em silêncio ao seu lugar, de onde perscrutou os rostos do par que o viera consultar. A freira tinha um ar embaraçado, envergonhado mesmo, e mal se atrevia a cruzar os olhos com o padre. Já o pároco não olhava para ninguém; transpirava em abundância, afogado numa ansiedade que ao clínico pareceu sinal inequívoco de que não era inocente naquela situação.

"Não é um carcinoma", disse por fim José, mantendo o semblante impenetrável. "É um criançoma."

As consultas prolongaram-se até às onze da manhã, altura em que a salinha se esvaziou por completo e José fez a habitual pausa para o café. Esticou os pés sobre a secretária e descontraiu, embora a sua vontade fosse estender-se sobre a marquesa e dormitar um pouco; lidar durante três horas ininterruptas com pacientes deixara-o exausto.

"Pode-se?"

O médico deu um salto na cadeira, entornando o café pela bata e pela balalaica, e olhou para a entrada.

"Domingos!"

O rosto sorridente de Domingos Rouco espreitava pela porta, divertido com a reacção do amigo e sobretudo com as nódoas de café espalhadas pela roupa.

"Lá se foi a balalaica!", exclamou em tom zombeteiro. "Tens de ir ao Bem Fica comprar mais..."

José sacudiu o café que lhe escorria pelos dedos, pousou a chávena na mesa e foi acolher o recém-chegado.

"Por aqui?", admirou-se, apertando-lhe a mão. "Só estávamos à vossa espera este fim-de-semana."