"Pois é, mas recebi um telegrama para vir com urgência a Inhambane e, pimba!, lá vim a correr."
"Que se passa? E coisa grave?"
"Não. Assuntos de família, nada de especial."
O médico fez-lhe sinal de que se sentasse na cadeira habitualmente reservada aos pacientes durante as consultas, mas antes de se lhe juntar lançou uma espreitadela para além da porta.
"A Albertina?"
"Vim sozinho", esclareceu o amigo. "No sábado faço o caminho de regresso e combinámos encontrar-nos no Bilene. Vocês sempre vão, não é verdade?"
José acomodou-se no seu lugar.
"Para o Bilene? Claro! E o que está combinado." Esticou o pescoço na direcção da janela e avistou o Chevrolet do recém- chegado estacionado à porta do hospital. "Olha lá, se vens de Inhambane, o melhor era até passares por nossa casa e íamos juntos. Que te parece?"
"lá, maningue naice."
O médico indicou-lhe a chávena vazia que havia entornado instantes antes.
"Vai um café?"
Domingos riu-se.
"Onde? Na roupa? Não obrigado." Abanou a cabeça, mudando para um tom ligeiramente mais sério. "Matabichei antes de sair de Lourenço Marques."
"E o trabalho? Tudo bem?"
"Os serviços de contencioso do BNU são sempre maningue movimentados, pá", disse. "Iá, a malta nunca pára." Esboçou uma expressão caricaturalmente confidencial. "Além do mais tenho o trabalho por fora, não é? Os indígenas enchem-me de serviço." Disse indígenas em tom irónico. "E
dão-me muita despesa também. Os gajos têm imensos problemas e pouco dinheiro. Mas suponho que é este o preço de ser o único advogado indígena de Moçambique. A malta vem toda bater-me à porta da flat e, como deves calcular, não posso dizer que não."
"Os pides ainda te chateiam?"
"Ui! Nem me fales! Há dois anos que não me largam." Ergueu uma sobrancelha. "Desde que foi criada a Frelimo que andam em cima de mim. Os gajos acham que eu ando envolvido na coisa."
"E não andas?"
O advogado riu-se.
"Não digo que não", admitiu.
"Se a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses de Moçambique e declarar independência imediata e se tu fazes parte da coisa, é natural que os pides te tragam debaixo de olho, não te parece?"
"Eh, pá! Não é bem assim. Quando a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses, isso não é literal. A Frelimo quer é expulsar o regime português. Mas os portugueses que pretendam cá ficar serão bem-vindos, claro. O nosso movimento não é radical. Não te esqueças que o Mondlane se licenciou nos Estados Unidos e que a Frelimo tem o apoio da Ford Foundation. Os países africanos estão todos a declarar a independência e esse processo é apoiado pelos Americanos. Não vejo por que motivo há-de Moçambique ser diferente."
"Não estou a ver o regime ir nessa conversa", observou José. "Se Portugal não ceder, o que achas que vai acontecer?"
"O Zé, já uma vez falámos nisso. Se o Salazar não ceder, o caldo vai-se entornar."
"Ou seja, a guerra vai chegar aqui a Moçambique..."
O advogado ficou um instante quieto, mas acabou por assentir com um ligeiro movimento da cabeça.
"Já te avisei, não avisei? Ela já começou em Angola e também na Guiné. Moçambique é o freguês que se segue..."
"E tu? Vais fazer parte dela?"
Domingos respirou fundo e encolheu os ombros num gesto de resignação.
"Não sei", disse. "Mas não estou a ver alternativa."
José desviou o olhar para a janela.
"E essa a vantagem do meu trabalho", considerou com ar pensativo. "Ao contrário dos advogados, os médicos não têm de se meter na política. O nosso trabalho é estritamente humanitário."
O amigo ergueu o dedo, como se o avisasse.
"Estás enganado, Zé. Na vida tudo é política."
José cruzou os braços, com o ar resoluto de quem tinha tomado uma posição e dali não sairia.
"Os médicos são a excepção."
"Isso é o que tu pensas. Por mais que tentemos fintar a política, meu caro, ela acaba sempre por nos apanhar. Vais ver! Mais tarde ou mais cedo, a política prega-te uma rasteira e ali estás tu, forçado a enfrentá-la. Vais ver!"
Mas o amigo não se mostrava convencido.
"Sabes, Domingos, a minha profissão tem certas especificidades com as quais não estás familiarizado. Para começar, o juramento de Hipócrates estabelece muito claramente que..."
José interrompeu a frase no momento em que se apercebeu de um vulto a assomar à porta.
Desviou os olhos naquela direcção e reconheceu a figura seca do director do hospital, que de manhã havia surpreendido na enfermaria. O doutor Abreu era um médico à moda antiga, cheio de formalismos e com uma pose austera, pelo que, em sinal de deferência pela hierarquia, José se levantou do lugar, no que foi acompanhado por Domingos.
"Doutor Abreu", disse. "Precisa de alguma coisa?"
O director do hospital nem o encarou. Em vez disso estudou o visitante com uma expressão de desdém, examinando-o lentamente dos pés à cabeça.
"O que está este preto aqui a fazer?"
A pergunta rebentou no gabinete com um fragor surdo, silenciando tudo à sua volta. José ficou um longo instante especado a fitar o superior hierárquico, horrorizado com o que acabara de ouvir e percorrendo mil opções sobre como responder. Deveria fingir que não percebera? Deveria agir como se aquilo que ele dissera fosse normal? Ou deveria berrar com o director? Aplicar-lhe uma murraça, talvez? Como proceder quando o seu chefe dizia uma coisa daquelas a uma pessoa, ainda para mais um amigo?
"Desculpe, doutor Abreu", acabou por murmurar, o coração aos pulos, dividido entre a vontade de o insultar e o receio de apanhar um processo disciplinar por insubordinação; teria de dizer o que pensava, mas precisava de medir as palavras. "O doutor Rouco é meu amigo e está aqui numa visita de cortesia. Os termos e o tom que o senhor utilizou não são, receio bem, os mais adequados e devo dizer que me deixam até envergonhado."
O director continuou a olhar fixamente o visitante.
"Este preto não é um paciente, pois não? Se não é, não está aqui a fazer nada e tem de se pôr na rua. Os únicos selvagens que aqui entram são os doentes." Apontou para a entrada. "O lugar dos outros é lá fora."
"O doutor Rouco não é um selvagem", ripostou José, o sangue já a ferver. "E meu amigo e exijo que o trate com o respeito que merece."
O director insistiu com o braço na direcção da porta de entrada.
"Rua!", ordenou. "Quero este preto na rua! Já! Fora do meu hospital! Fora daqui!"
Domingos e José trocaram um olhar, percebendo que a coisa não se iria resolver.
"Deixa estar, Zé", disse o advogado, pegando nas suas coisas e preparando-se para sair. "Eu vou dar uma volta e encontramo- nos para o almoço, está bem?"
"Isso não é bem assim", disse o amigo, voltando-se de novo para o superior hierárquico. "Se o doutor Rouco sai, eu também saio."
Foi a primeira vez que o director do hospital pousou os olhos no subordinado desde o início do incidente.
"Era o que mais faltava!", rosnou. "O preto sai, mas o senhor doutor fica porque tem deveres a cumprir!"
Era o que José queria ouvir: uma ordem que pudesse desafiar. Arrumou o estetoscópio na malinha, despiu a bata suja e atirou- a para o chão, pegou na mala e saiu do hospital ao lado do amigo.
Fazia calor ao sol. Caminharam os dois em silêncio até ao Chevrolet. Quando entrou no veículo, José sentiu o interior a escaldar como se estivesse a meter-se numa lareira. Domingos instalou-se ao volante, ligou o motor e, com o braço atrás do banco para fazer marcha atrás, encarou o amigo; trazia um sorriso irónico a bailar-lhe nos lábios espessos.