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"O que te dizia eu?", perguntou. "A política apanha-nos sempre."No momento em que estacionou à beira da praia da Samba, o minúsculo Austin-Morris-Minor parecia uma lata de sardinhas; os ocupantes iam tão apertados que havia pernas e braços a sair pelas janelas. Logo que as portas se abriram, do interior saltaram Diogo, os pais com a bebé, os outros três irmãos e ainda o impedido que servia a família; eram ao todo oito pessoas.

Enquanto durava, a acanhada viagem até à praia no Austin era motivo de galhofa todos os domingos, mas não neste. A euforia provocada pelo desembarque das primeiras tropas havia gerado na família uma reconfortante sensação de segurança, embora com o tempo esse sentimento fosse cedendo de novo lugar à apreensão. Todos os dias o pai chegava do quartel com mais novidades e nem sempre eram as melhores.

A ida à praia era uma tentativa de desanuviar o ambiente pesado, que a todos afectava. A época das chuvas, quando o tempo é mais quente, já havia passado, mas a praia da Samba permanecia apetecível como sempre, as areias douradas a prolongarem-se até à água tépida e translúcida. Os recém-chegados estenderam as toalhas numa crista do areal, tendo o cuidado de proteger do sol os cestos com a comida e o garrafão, e logo todos correram para a água, as crianças à frente a soltar guinchos de excitação.

Ao contrário dos irmãos, porém, Diogo não era um amante dos mergulhos nem das brincadeiras à beira-mar, pelo que cedo se deitou na toalha e ali se deixou tostar. Minutos mais tarde sentiu os pais regressarem também do banho. Falavam à distância, mas as vozes ondulavam pela areia e pela brisa e chegavam a Diogo como se ambos estivessem ao fundo de um túnel.

"A água está uma maravilha", observou a mãe. "Então junto à areia parece mesmo um caldinho."

"E o que isto tem de bom", concordou o pai. "Mas não sei se vamos aguentar muito tempo."

"Homessa! Porque dizes isso?"

"Ora! Porque os ataques não param. Ainda noutro dia a Força Aérea conseguiu pôr fim ao cerco à Mucaba, não foi? Pois os terroristas voltaram ontem a atacar a Mucaba."

"Credo! E não se consegue travar essa gente?"

"Pelos vistos não. Os tipos atacaram também Sanza Pombo e a Damba. Foram dadas ordens para suspender o cultivo do algodão em todas estas regiões."

"Mas quem são esses terroristas?", perguntou a mãe. "O que querem eles? Exterminar-nos a todos?"

"Uns chamam-se UPA e outros MP... qualquer coisa. Dizem que Angola é para os pretos."

"Que disparate!"

"Pode ser um disparate, mas os Americanos dão-lhes razão e os comunistas entregam-lhes armas. E queres saber uma coisa? Até a ONU votou a favor dos terroristas!" Soltou uma gargalhada forçada, que a mulher não acompanhou. "E para rir!"

"Quer dizer que Portugal está sozinho?"

O pai anuiu.

"E incrível, não é? Matam mulheres e crianças à catanada e o que faz o mundo? Aplaude!"

A abanar a cabeça de reprovação, Lourdes inclinou-

se sobre um cesto e extraiu uma sanduíche do interior.

Desembrulhou o guardanapo que a envolvia e sentou-

se a contemplar o mar. Os filhos brincavam ainda na

água e Lourdes acompanhou com atenção os seus

movimentos, tentando perceber se de alguma forma

estariam perturbados pelo ambiente que se instalara

em Luanda. Não deve ter gostado do que viu porque

de repente abanou a cabeça e, com súbita resolução,

voltou-se para o marido.

"Ó Quim, quando é que disseste que acabava a tua

comissão de serviço?"

O marido engoliu o pedaço de sanduíche que tinha

na boca antes de responder.

"No próximo mês", indicou. "O coronel Tavares já me perguntou se quero renovar por mais quatro anos."

"E tu, o que lhe respondeste?"

"Que ia pensar."

A mulher voltou a contemplar o mar enquanto

mastigava. Havia barcos de pesca a deslizar na água e

um deles, baloiçando nas ondas, aproximava-se da

praia já em fecho de faina. Os filhos tinham-se

apercebido daquele barco e interceptavam-lhe o

caminho para espreitar os peixes aos saltos nas cestas.

"Amanhã vou à Agência Atlas comprar os bilhetes", anunciou Lourdes sem tirar os olhos vigilantes dos filhos. "No mês que vem estamos todos na Metrópole."O relógio assinalava já as onze da manhã e José Branco ainda não fora chamado. Uma dor na região lombar arrancou-lhe um esgar sofrido; encontrava-se havia demasiado tempo sentado naquela cadeira. Já tinham passado duas horas e ninguém lhe dizia nada. Ergueu-se para espairecer e deu um passeio pelo rés-do-chão da elegante moradia do centro de Lourenço Marques. Deparou com uma funcionária que escrevinhava a uma secretária e trocou com ela um sorriso tímido.

"Tenha paciência", disse ela. "O senhor director já o chama."

O médico passeou os olhos pela secretária e vislumbrou o papel ordinário de um jornal a espreitar por baixo do que pareciam relatórios.

"É de hoje?"

A funcionária pegou no periódico, um jornal de páginas enormes, e estendeu-lho.

"Diz aqui 16 de Abril de 1964, como vê", indicou, apontando a data por baixo do cabeçalho.

"Quer?"

Era de facto a edição dessa manhã do Notícias. José pegou no matutino e voltou para a cadeira, animado por ter encontradouma forma de passar o tempo enquanto não era chamado. Na verdade devia ter comprado um exemplar a caminho da reunião, mas a realidade é que nunca imaginara que o director dos Serviços Provinciais de Saúde o faria esperar tanto tempo.

Passou os olhos pela primeira página e constatou que os principais títulos eram desinteressantes. Estava quase a saltar directamente para as páginas desportivas quando reparou, escondida no canto à direita, numa caixa estreita e pequena com um título bizarro: "Notícia falsa sobre Moçambique na Rádio Nairobi". É verdade que não percebia muito de jornalismo, mas se a notícia era falsa porque a publicavam?

Intrigado, leu o interior da caixa. "A estação emissora de Nairobi, no Quénia, difundiu a notícia cujo teor é o seguinte", começava o texto, passando a citar a informação queniana. "«Fontes moçambicanas declararam que as autoridades portuguesas haviam declarado o estado de emergência e mandado 2500 homens para a Província da Zambézia, ao norte do Rio Zambeze. As tropas estão a operar contra os rebeldes que declararam guerra aos portugueses há um mês. A informação veio em cartas entregues por mão, dizendo que até agora nenhum membro das guerrilhas fora capturado, embora tenham feito 'raids' contra diversos postos portugueses»."

Parou a leitura, estupefacto. Estado de emergência? Dois mil e quinhentos homens para a Zambézia? Rebeldes que declararam guerra há um mês? "Raides" contra postos portugueses?

Guerrilhas? Mas o que era aquilo? Voltou ao texto. "A notícia acima transcrita - inteiramente forjada

- opõe-se formal desmentido, porquanto há calma absoluta em todo o território da Província de Moçambique, não se tendo registado o mais pequeno incidente." O texto prosseguia com a habitual diatribe contra os inimigos de Portugal e não dava mais informações úteis, mas só o facto de o